O retorno para a terra natal costuma ser um momento de encontro com as próprias raízes e conexão com o passado. Para Jandilma Santos, de 44 anos, a cidade onde viveu durante a infância, hoje, é apenas uma lembrança. Isso porque o Povoado Cabeço, território que era localizado na foz do Rio São Francisco, em Sergipe, foi consumido pelo oceano no fim dos anos 1990.
A pedagoga lembrou, à reportagem da agência Deutsche Welle, do dia em que foi acordada pela mãe enquanto o mar invadia a casa em que moravam. Ao descer da cama, Santos percebeu a água salgada já na altura da canela. Aquela não era a primeira vez, nem seria a última em que ela veria casas serem submersas pelo oceano.
Povoado Cabeço desapareceu do mapa em 1990
O povoado de pescadores ficava na região do Baixo São Francisco, em Sergipe, e desapareceu do mapa brasileiro no fim dos anos de 1990. Mais de duas décadas depois de sumir, o povoado e sua população conseguiram uma indenização histórica em relação ao impacto socioambiental das barragens na paisagem nacional.
Os 220 moradores receberam R$ 40 milhões da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), em maio de 2024, após provarem que o Povoado Cabeço foi engolido pelo mar devido à construção da barragem da UHE (Usina Hidrelétrica) de Xingó, em Canindé de São Francisco, na divisa entre Alagoas e Sergipe. A obra provocou uma erosão costeira na foz do rio, culminando com elevação das águas na região.
Segundo a Deutsche Welle, os moradores lutavam desde 2003 para conquistar a reparação. O processo, aberto na Justiça Federal, terminou com um acordo e garantiu a cada um dos moradores o valor líquido, já retirando os honorários advocatícios, de R$ 153 mil.
O valor é quatro vezes maior do que as indenizações previstas no acordo homologado em novembro, no STF (Supremo Tribunal Federal), pelos danos causados com o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, no ano de 2015.
Indenização chegou após morte de moradores
O acordo do Cabeço foi proposto pela Chesf, diante da privatização da Eletrobras, então maior acionista da companhia, em 2022. “Temos pessoas que moravam no Povoado Cabeço, nasceram lá e hoje têm 90 e poucos anos. Então, quando pensamos num acordo, pensamos nessas pessoas”, afirmou a advogada Jane Tereza Fonseca, que defendeu os moradores do povoado desde o início da ação, ao lado de outros juristas.
Quando a indenização do Povoado Cabeço chegou, 39 pessoas que entraram com a ação inicialmente já haviam morrido. Outras três morreram entre a decisão e o pagamento. O dinheiro, nestes casos, foi destinado aos herdeiros. De todos indenizados, apenas três ainda não receberam os valores, por questões documentais.
“Esse processo é histórico para todo o pessoal que é impactado com barragem no Brasil, porque ele abriu uma jurisprudência única”, acrescentou Carlos Eduardo Ribeiro, cocriador do Info São Francisco, à Deutsche Welle.
Impacto ambiental da barragem
O Povoado Cabeço possuia cerca de 120 casas e ficava no lado sergipano da foz do São Francisco, na cidade de Brejo Grande. Não se sabe ao certo quando começou o povoamento, mas estima-se que a comunidade se formou em torno de um farol, erguido entre os anos de 1870 e 1873, o único resquício ainda visível da localização original.
Perícias produzidas para a ação na Justiça Federal mostraram que a construção do reservatório de Xingó provocou a redução da vazão do rio, que contribuiu para o aumento da erosão costeira e da salinização da água. A partir de documentos produzidos desde o século 19 até 2015, conseguiu-se mostrar que a erosão costeira foi impulsionada para além da dinâmica natural.
Deste modo, o fluxo de sedimentos depositados no delta do rio diminuiu, o que enfraqueceu a capacidade dele de conter o avanço da maré, deixando o povoado vulnerável. A dinâmica de cheias também foi afetada, limitando a formação de lagoas que alimentavam o plantio de arroz e o uso das águas como berçário de espécies nativas e crustáceos.
O processo mostrou ainda que o estudo de impacto ambiental referente à hidrelétrica de Xingó mediu impactos a até 100 quilômetros de distância da barragem, omitindo os efeitos na foz do rio. Em 2022, a responsabilidade da Chesf foi reconhecida pela 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe.
Antes de fechar o acordo com os moradores do Povoado Cabeço, a Chesf chegou a alegar que havia cumprido todos os procedimentos legais, incluindo a obtenção das licenças ambientais, para a construção da hidrelétrica e que a erosão já existia antes da obra, sendo causada por fatores climáticos e geológicos. A advogada das vítimas ressalta, no entanto, que ficou claro no processo que Xingó foi fundamental para a destruição do povoado Cabeço.
Além da ação individual, há outras duas ações coletivas relacionadas ao Povoado Cabeço. Uma delas é movida pela Associação Comunitária do povoado, pela destituição do povoado e seu patrimônio, como igrejas, escola, delegacia e cemitério. A outra é da Associação de Pescadores, pelo impacto na produção pesqueira. Cada uma delas garantiu R$ 10 milhões, cujo destino será definido em audiência pública a ser realizada no dia 12 de fevereiro do próximo ano.
Os impactos afetivos da migração forçada
Quando os imóveis do Povoado Cabeço foram engolidos pelo mar, parte dos moradores passou a ocupar casas em um conjunto habitacional de uma zona mais afastada da costa, conhecida como Saramém. Contudo, foram disponibilizadas apenas 80 casas, o que não contemplava todas as famílias. Ficou a cargo da própria comunidade a adaptação, sem considerar os efeitos psicossociais da mudança.
Lá, apesar de passarem a ter água encanada e energia elétrica, o que não existia no povoado, os moradores alegam terem sido destituídos dos seus modos de vida e da harmonia anterior. “Eu não tenho o lugar que eu morei na infância porque o mar engoliu. Não tenho um lugar para eu voltar e dizer: ‘aqui eu fiz isso’, entendeu?”, afirma Santos.
Frequentador da região há pelo menos 40 anos, o doutor em Sociologia pela UFS (Universidade Federal de Sergipe), Wellington Bomfim, pesquisou os impactos e migração da comunidade do Povoado Cabeço para o Saramém. “A mudança mais significativa para os moradores foi o fato de terem que deixar a região para outro lugar, a um quilômetro da foz, onde criou-se uma comunidade com pessoas de outras localidades”, diz.
Segundo ele, a sociabilidade foi impactada, pois até a década de 1980 o Povoado Cabeço era uma comunidade tutelada pela Marinha, que definia inclusive quem poderia construir as casas lá. “Geralmente eram pessoas das famílias que estavam ali. Então, pessoas de fora dificilmente viravam moradores. Havia uma organização interna, um conselho formado por moradores mais antigos”, explica Bomfim.
Legado de apagamento das barragens hidrelétricas
O laudo pericial que responsabilizou a Chesf diz que Xingó foi o último elemento, de uma cascata de barragens no rio São Francisco, que levou ao desaparecimento do Povoado Cabeço. Considerado um dos mais importantes cursos d’água brasileiros, o rio é um exemplo de como as barragens trouxeram danos socioambientais que ainda permanecem.
Um relatório produzido pelo então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana estima que em 40 anos 1 milhão de brasileiros foram expulsos das suas terras para a construção de 2 mil barragens. No país, há barragens para geração de eletricidade, como as localizadas no rio São Francisco; abastecimento de água; acumulação de rejeitos industriais, como as que romperam em Mariana e Brumadinho; e para usos múltiplos.
Hoje existem 27,8 mil cadastradas na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), sendo que 14% delas de alto risco em caso de ruptura. Do total de barragens, 1,3 mil são hidrelétricas e 71 estão na bacia hidrográfica do São Francisco.
Ocupando 8% do território nacional e atravessando sete estados, o São Francisco é sede de oito das doze hidrelétricas que a Chesf mantém no Nordeste. O rio vem sofrendo intervenções que comprometeram a sua intensidade de vazão desde 1913, com a construção da usina Angiquinho, em Alagoas, a primeira hidrelétrica da região.
“Barragens podem criar desaparecimentos de lugares que vão ser alagados ou lugares que vão desaparecer por secar, como alguns no Baixo São Francisco. Antes, nesses lugares você tinha tudo, agora precisa comprar tudo, até água”, afirma Ribeiro.
Para Jandilma Santos, depois de duas décadas de espera, a indenização aos antigos moradores do Povoado Cabeço é apenas um consolo. “Nada que essa indenização ou a Chesf ou esse acordo fizesse poderia cobrir, tapar ou sarar nossa mente, nosso coração e tudo que a gente viveu lá.”
Em nota, a Eletrobras afirmou que tem buscado a conciliação em diversos processos desde a privatização, contexto em que se deu o acordo com os ex-moradores do Povoado Cabeço. A empresa afirmou que as oito usinas que mantém no curso do São Francisco são responsáveis, juntas, por uma potência instalada de 9.971,501 MW. “Todas as diretrizes dos órgãos ambientais são respeitadas pela empresa, monitorando e mitigando eventuais impactos, de acordo com as regras e legislações em vigor”, afirmou.