Relato foi ponto alto no debate promovido pelo Fórum Permanente de Biodireito, Bioética e Gerontologia, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Entenda o que é suicídio assistido
No dia 23 de outubro, o poeta Antonio Cícero, membro da Academia Brasileira de Letras, se submeteu a um procedimento de morte assistida em Zurique, na Suíça. Aos 79 anos, sofria de Alzheimer e chegara à conclusão de que a vida tinha se tornado insuportável, como escreveu em sua carta de despedida. Nunca é demais distinguir a eutanásia, na qual o médico prescreve e aplica a droga, da morte assistida, na qual é o paciente que a administra. Apesar de a decisão ser considerada polêmica, vem aumentando o número de países que descriminalizaram o método – o parlamento britânico deu sinal verde para legalizar o suicídio assistido no Reino Unido no fim de novembro, no caso de adultos com doenças terminais.
Por isso foi especialmente oportuno o debate “Morte assistida”, promovido no dia 10 pelo Fórum Permanente de Biodireito, Bioética e Gerontologia da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Organizado pela desembargadora Maria Aglaé Tedesco Vilardo, o evento foi tão rico que resolvi escrever duas colunas sobre o tema, a primeira dedicada ao depoimento do médico geriatra Daniel Azevedo, doutor em saúde coletiva pela UFRJ, que acompanhou um paciente decidido a se submeter ao suicídio assistido.
Sem identificar o idoso, que apresentava múltiplas condições crônicas de saúde, Azevedo ressaltou sua convicção sobre o que fazer. Alegando que se sentia fraco o tempo inteiro e que já tinha tido uma vida digna e feliz, o paciente entrou em contato com a Dignitas, a associação utilizada pelo poeta Antonio Cícero, embora haja outras três no país: Pegasos, Lifecircle e Exit. “Ele estava muito determinado”, afirmou o geriatra.
O processo levou quatro meses. A primeira etapa é se tornar membro da associação, pagando uma taxa de adesão e a anuidade: respectivamente, 220 e 80 francos suíços. Como a cotação é de R$ 6,93 para cada franco, o desembolso inicial somou pouco mais de R$ 2 mil. Quem se torna membro pode preencher um documento com suas diretivas antecipadas de vontade – os desejos sobre cuidados e tratamentos que deseja (ou não) receber – e pleitear o suicídio assistido, que deve ser acompanhado de uma biografia, relatórios médicos sobre seu estado de saúde e uma carta formal de solicitação do procedimento.
Casal idoso se abraça: aumentou o número de países que vêm descriminalizando o suicídio assistido
Geralt (IA) para Pixabay
Um mês depois chegou a “luz verde provisória”, que propõe três alternativas para a pessoa: guardar aquele aviso como uma opção para usar quando julgar adequado; agendar a primeira avaliação médica na Suíça e voltar para casa, a fim de ter tempo para decidir o que fazer; agendar logo as duas avaliações médicas necessárias para ter a “luz verde definitiva” e, se confirmada, realizar o procedimento na sequência.
Desde 1998, a Dignitas acompanhou mais de 3 mil suicídios. A associação defende que os indivíduos assistidos “sempre alcançaram o objetivo desejado: o fim da vida e do sofrimento de uma forma autodeterminada, segura e indolor”. Após tomar o pentobarbital sódico, a pessoa adormece em no máximo cinco minutos, atingindo um coma profundo que se assemelha à anestesia geral. Depois de um período de total inconsciência, o medicamento afeta a respiração, que vai ficando mais fraca, até cessar.
Em caso de interesse, há a necessidade de envio de outros documentos, até o agendamento da data: ficha dentária, cópia do passaporte, certidão de nascimento, escritura pública declaratória de domicílio e estado civil, formulário sobre acompanhantes e destino das cinzas. No total, o valor chega a R$ 80 mil, sem contar despesas aéreas, de hospedagem.
Atuando na área de cuidados paliativos, Azevedo é autor de “O melhor lugar para morrer”, escrito com base em sua dissertação de mestrado, e um estudioso da terminalidade. Mesmo assim, contou que ficou surpreso quando o paciente o convidou para integrar o pequeno grupo de familiares que o acompanharia.
“Chegamos numa quarta-feira pela manhã e ele estava muito fatigado. A primeira consulta seria no dia seguinte e a segunda estava em aberto, o que me intrigou, porque o suicídio estava marcado para a sexta. O médico que foi ao hotel na quinta-feira tinha aproximadamente 75 anos e se vestia informalmente. Aquele era um trabalho voluntário e ele já havia atuado como facilitador em dezenas de ocasiões. Sobre o procedimento, explicou que seria preciso tomar o pentobarbital sódico diluído em cerca de 50ml de água (um quarto de uma xícara de chá). Inclusive, pediu que ele bebesse esse volume de líquido para se certificar de que conseguiria fazê-lo sem problemas. Fez uma única recomendação: ‘depois que começar a tomar, não pare’”, relatou.
Na sua avaliação, o homem estava seguro e sereno, e teria o resto do dia e a noite para refletir. Na manhã seguinte, a última consulta seria por videochamada. À noite, o grupo saiu para jantar e, na volta, Azevedo foi para o quarto, enquanto os demais ainda permaneceram algum tempo no saguão. Logo depois recebeu uma mensagem e foi encontrar o paciente: “decidi desistir”, disse ele.
Na manhã de sexta, o médico do Dignitas fez a videochamada, como combinado, e foi informado da mudança de planos. Na plateia, alguém quis saber se conhecia o motivo da desistência, mas Azevedo afirmou que não tinha como responder à pergunta. Sua hipótese é de que aquela noite com o grupo familiar mais próximo talvez tenha pesado na decisão.
Citou o livro “In love – a memory of love and loss” (“Apaixonados – uma memória de amor e perda”), lançado em 2022 pela escritora Amy Bloom, narrando a jornada do marido, com Alzheimer, até o suicídio assistido. Entre os dados sobre o procedimento, uma surpresa: 60% desistem dele. A informação mostra que descriminalizar o acesso também pode ser uma experiência poderosa para se optar pela vida. Na quinta-feira, a segunda coluna sobre o seminário: “Por que deixamos de ser vistos como seres aptos no final da vida?”.