E como isso pode definir as eleições americanas no dia 5 de novembro. Há cerca de 20 anos, moradores de uma pequena comunidade na Pensilvânia vislumbraram uma promessa irresistível: receber 5 mil dólares por mês pelos próximos 50 anos. Tudo que precisavam fazer era autorizar a exploração de gás natural no quintal de casa.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O oitavo capítulo é sobre meio ambiente.
O SONHO AMERICANO
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5, Racismo: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
Episódio 6, EUA e o mundo: Dearborn: como uma cidade de 100 mil habitantes pode definir a eleição presidencial dos Estados Unidos
Episódio 7, Fake news: ‘Estão comendo pets’: como um terremoto piorou a crise no Haiti e influenciou na criação da maior fake news das eleições nos Estados Unidos
Episódio 8, Meio ambiente: Do sonho ao pesadelo: como a exploração de gás natural transformou promessas de riqueza em desilusão na Pensilvânia
Victoria Switzer, moradora da comunidade de Dimock, se lembra de receber a proposta como uma surpresa. Como num conto de fadas, a professora estava prestes a se aposentar e tinha conhecido o homem da vida dela.
“Me disseram que eu ia ganhar 5 mil dólares por ano… pelos próximos 50 anos! Pro meu vizinho disseram que ele ia ter dinheiro pra comprar uma Mercedes por dia e ainda ia sobrar troco”, diz Victoria ao explicar como a proposta chegou.
Anos depois, a empolgação de uma renda extra deu lugar ao pesadelo. A pacata Dimock, com pouco mais de 1 mil habitantes, começou a sofrer com problemas ambientais da extração do recurso.
‘A Terra dos Rios Enferrujados’
Foi no mundo subterrâneo que a economia do estado da Pensilvânia se desenvolveu e, nos Estados Unidos como um todo, as minas sempre tiveram um papel essencial, inclusive durante guerras. Era delas que vinha o carvão que aquecia a casa dos americanos e o que também servia para a produção de armas e abastecimento de locomotivas.
Foi só nos anos 70 que as regulações começaram a ficar mais rígidas, com a proibição de trabalho infantil nas minas, além da obrigação do tratamento de água usada no processo por parte das empresas.
Essas restrições foram as principais responsáveis por fazer o carvão ficar mais caro e entrar em declínio, o que deixou várias pessoas desempregadas e forçou a desativação de milhares de minas.
Além disso, a maioria delas foi cavada abaixo do nível do lençol freático e inundou. As consequências disso são sentidas até hoje na superfície:
“Sob os nossos pés havia uma gigantesca mina de carvão. Quando ela foi desativada os túneis encheram de água. Hoje essa água brota do solo contaminada, direto pros rios. É uma cena triste. O cheiro é de enxofre. O rio tá morto, nada sobrevive aqui. E as pequenas iniciativas para descontaminar não são suficientes. Não há vontade política. Não há dinheiro suficiente. Não há espaço. Por isso a água que entra aqui nesse reservatório sai de uma forma pouco diferente do jeito que entrou”, comenta Bobby Hughes, filho e neto de americanos que trabalharam na indústria do minério de carvão na Pensilvânia.
Essa é a terra dos rios enferrujados e Bobby é uma das pessoas que faz um trabalho de formiga de tentar reabitá-los, mas o sucesso é limitado.
“Eu quero mostrar que esses rios tiram valor dos terrenos das pessoas. Que tiram áreas de recreação porque ninguém pode nadar e ninguém pode pescar. E que as áreas ao redor das minas abandonadas podem causar incêndios”, comenta.
Aposentar o carvão foi uma das soluções adotadas como uma tentativa de diminuir o impacto americano nas mudanças climáticas, uma vez que é o combustível que mais produz carbono na sua queima.
Mas Bobby Hughes diz que essa é uma lição antiga: “Nós sabíamos que o carvão era ruim. Eu tinha mineiros na minha família, essa é Pensilvânia. Mas aí começou essa moda do gás natural. Tinha a palavra natural no nome, nos diziam que é melhor pro meio ambiente.”
O Fracking na Pensilvânia
Com a promessa de dinheiro e um futuro limpo, a população de Pensilvânia deixou que empresas explorassem gás natural na frente de casa.
O processo, que faz parte do epicentro das eleições americanas deste ano, é chamado de Fracking, que pode ser traduzido como fraturamento hidráulico.
Com ele, as empresas perfuram poços e vão até as profundezas do solo, chegando na camada de pedra. Depois, um jato forte de água e produtos químicos é usado para fazer rachaduras. E é a partir dessas rachaduras que o gás natural que está na pedra é liberado.
Em consequência, é criada uma piscina de água podre com produtos químicos usados no processo. Essa água escorre e forma os chamados Rios Enferrujados.
Ray Kemble é mais uma das vítimas da exploração do gás natural da Pensilvânia e o Fracking segue atingindo-o com suas garras.
“Eu tive que fazer 7 cirurgias de câncer no último ano e meio. Eu tenho silicose dos pulmões por causa da areia que eles usam na extração. Ninguém tinha me contado isso. Que eu precisaria ter um respirador pra viver aqui”, ele conta.
No momento em que Ray topou alugar o terreno para a extração dos minérios, havia uma série de linhas finas no contrato. Uma delas o proibia de falar em público sobre a ação da empresa ou sobre os impactos que o fraturamento hidráulico poderia gerar.
Mas ele não se segurou e falou mesmo assim.
Hoje, enfrenta um processo de US$ 8 milhões por contar detalhes da tragédia que vive. É o mesmo motivo pelo qual Victoria Switzer e seu esposo são muito cuidadosos:
“Eu não posso falar sobre o contrato que eu assinei. E também não posso falar nada sobre a empresa. Não posso falar nada contra eles”, ela conta.
Mas Victoria mostra as garrafas de água que deixa em casa e relata que não bebe água da torneira há mais de 7 anos.
Efeitos do gás natural
A princípio, o gás natural era visto como uma melhor opção para o meio ambiente, uma possível energia mais limpa. Mas hoje já se sabe que a perfuração deixa escapar o gás que está nas rochas e que isso é ainda pior para as mudanças climáticas do que o carvão.
Dentro deste contexto, os Estados Unidos relaxaram suas regras ambientais e, graças ao Fracking, se tornaram o maior produtor de gás natural do mundo.
Mas isso tem implicações globais.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, os Estados Unidos aplicaram sanções que proibiam os russos de venderem o gás para a Europa. Antes disso, a Rússia era o maior fornecedor disponível.
Agora, com o mercado disponível e com o início da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos se tornaram o principal exportador de gás natural para a Europa. Para isso, eles transformam o gás em líquido e enviam em contêineres de navios.
E a Pensilvânia é um dos estados americanos com a maior produção de gás natural, justamente por conta do Fracking.
Eleição dividida nos Estados Unidos
O impacto planetário do Fracking passa longe das preocupações dos eleitores da Pensilvânia, um estado fundamental para as eleições americanas.
Na região de Wade, por exemplo, ao norte do estado, nasce o grande rio Delaware e por conta dele o Fracking nunca foi permitido na área. Mas isso não agradou alguns moradores da região que já tinham alugado suas terras para a exploração de gás:
“Eu já tinha até assinado contrato de aluguel das minhas terras para produção de gás. Nós precisamos de energia e de muito mais no futuro. Pra desenvolver inteligência artificial, por exemplo. Para mim, o sonho americano é você ter sua propriedade e independência”, comenta Tom Shepstone, morador da área.
Quando se tratam dos candidatos à presidência dos Estados Unidos, as opiniões divergem acerca desta contínua exploração do gás natural.
Donald Trump, candidato republicano, transformou o seu apoio ao Fracking em bordão: “Drill, baby, drill” (em português, quer dizer “perfure o solo, baby, perfure”).
Enquanto isso, Kamala Harris, atual vice-presidente e candidata democrata, que há anos afirmava ser contra o Fracking, agora teve que mudar de opinião a fim de conquistar votos da Pensilvânia.
Financeiramente, talvez seja um dos aluguéis mais rentáveis nos Estados Unidos, mas por onde o Fracking passa ele deixa marcas ambientais que podem ser irreversíveis. Marcas que deixam até mesmo o sonho americano com aparência doente.
E quem já viu de perto os efeitos desta exploração diz que o sonho americano já se tornou outra coisa: ar, água e solo saudáveis.
Esta reportagem faz parte da série “O Sonho Americano”. A equipe da TV Globo percorreu estados-chave nas eleições presidenciais dos EUA para descobrir o que está impactando os eleitores neste ano. O oitavo capítulo é sobre meio ambiente.
O SONHO AMERICANO
Episódio 1, Democracia: Crianças arrecadam US$ 1 milhão para construir parquinho e incluir alunos com deficiência em escola dos EUA
Episódio 2, Economia: ‘Cheeseheads’: Como o queijo virou símbolo de Wisconsin e o que isso revela sobre a economia americana
Episódio 3, Inflação: Das casas ao ‘tailgate’: como a inflação tem distanciado os jovens do sonho americano nos Estados Unidos
Episódio 4, Aborto: ‘Janes de Chicago’: conheça a rede secreta de mulheres que ajudou a mudar a história do aborto nos EUA
Episódio 5, Racismo: ‘Preferiria morrer a confessar um crime que não cometi’: a história do homem negro que passou 46 anos preso injustamente
Episódio 6, EUA e o mundo: Dearborn: como uma cidade de 100 mil habitantes pode definir a eleição presidencial dos Estados Unidos
Episódio 7, Fake news: ‘Estão comendo pets’: como um terremoto piorou a crise no Haiti e influenciou na criação da maior fake news das eleições nos Estados Unidos
Episódio 8, Meio ambiente: Do sonho ao pesadelo: como a exploração de gás natural transformou promessas de riqueza em desilusão na Pensilvânia
Victoria Switzer, moradora da comunidade de Dimock, se lembra de receber a proposta como uma surpresa. Como num conto de fadas, a professora estava prestes a se aposentar e tinha conhecido o homem da vida dela.
“Me disseram que eu ia ganhar 5 mil dólares por ano… pelos próximos 50 anos! Pro meu vizinho disseram que ele ia ter dinheiro pra comprar uma Mercedes por dia e ainda ia sobrar troco”, diz Victoria ao explicar como a proposta chegou.
Anos depois, a empolgação de uma renda extra deu lugar ao pesadelo. A pacata Dimock, com pouco mais de 1 mil habitantes, começou a sofrer com problemas ambientais da extração do recurso.
‘A Terra dos Rios Enferrujados’
Foi no mundo subterrâneo que a economia do estado da Pensilvânia se desenvolveu e, nos Estados Unidos como um todo, as minas sempre tiveram um papel essencial, inclusive durante guerras. Era delas que vinha o carvão que aquecia a casa dos americanos e o que também servia para a produção de armas e abastecimento de locomotivas.
Foi só nos anos 70 que as regulações começaram a ficar mais rígidas, com a proibição de trabalho infantil nas minas, além da obrigação do tratamento de água usada no processo por parte das empresas.
Essas restrições foram as principais responsáveis por fazer o carvão ficar mais caro e entrar em declínio, o que deixou várias pessoas desempregadas e forçou a desativação de milhares de minas.
Além disso, a maioria delas foi cavada abaixo do nível do lençol freático e inundou. As consequências disso são sentidas até hoje na superfície:
“Sob os nossos pés havia uma gigantesca mina de carvão. Quando ela foi desativada os túneis encheram de água. Hoje essa água brota do solo contaminada, direto pros rios. É uma cena triste. O cheiro é de enxofre. O rio tá morto, nada sobrevive aqui. E as pequenas iniciativas para descontaminar não são suficientes. Não há vontade política. Não há dinheiro suficiente. Não há espaço. Por isso a água que entra aqui nesse reservatório sai de uma forma pouco diferente do jeito que entrou”, comenta Bobby Hughes, filho e neto de americanos que trabalharam na indústria do minério de carvão na Pensilvânia.
Essa é a terra dos rios enferrujados e Bobby é uma das pessoas que faz um trabalho de formiga de tentar reabitá-los, mas o sucesso é limitado.
“Eu quero mostrar que esses rios tiram valor dos terrenos das pessoas. Que tiram áreas de recreação porque ninguém pode nadar e ninguém pode pescar. E que as áreas ao redor das minas abandonadas podem causar incêndios”, comenta.
Aposentar o carvão foi uma das soluções adotadas como uma tentativa de diminuir o impacto americano nas mudanças climáticas, uma vez que é o combustível que mais produz carbono na sua queima.
Mas Bobby Hughes diz que essa é uma lição antiga: “Nós sabíamos que o carvão era ruim. Eu tinha mineiros na minha família, essa é Pensilvânia. Mas aí começou essa moda do gás natural. Tinha a palavra natural no nome, nos diziam que é melhor pro meio ambiente.”
O Fracking na Pensilvânia
Com a promessa de dinheiro e um futuro limpo, a população de Pensilvânia deixou que empresas explorassem gás natural na frente de casa.
O processo, que faz parte do epicentro das eleições americanas deste ano, é chamado de Fracking, que pode ser traduzido como fraturamento hidráulico.
Com ele, as empresas perfuram poços e vão até as profundezas do solo, chegando na camada de pedra. Depois, um jato forte de água e produtos químicos é usado para fazer rachaduras. E é a partir dessas rachaduras que o gás natural que está na pedra é liberado.
Em consequência, é criada uma piscina de água podre com produtos químicos usados no processo. Essa água escorre e forma os chamados Rios Enferrujados.
Ray Kemble é mais uma das vítimas da exploração do gás natural da Pensilvânia e o Fracking segue atingindo-o com suas garras.
“Eu tive que fazer 7 cirurgias de câncer no último ano e meio. Eu tenho silicose dos pulmões por causa da areia que eles usam na extração. Ninguém tinha me contado isso. Que eu precisaria ter um respirador pra viver aqui”, ele conta.
No momento em que Ray topou alugar o terreno para a extração dos minérios, havia uma série de linhas finas no contrato. Uma delas o proibia de falar em público sobre a ação da empresa ou sobre os impactos que o fraturamento hidráulico poderia gerar.
Mas ele não se segurou e falou mesmo assim.
Hoje, enfrenta um processo de US$ 8 milhões por contar detalhes da tragédia que vive. É o mesmo motivo pelo qual Victoria Switzer e seu esposo são muito cuidadosos:
“Eu não posso falar sobre o contrato que eu assinei. E também não posso falar nada sobre a empresa. Não posso falar nada contra eles”, ela conta.
Mas Victoria mostra as garrafas de água que deixa em casa e relata que não bebe água da torneira há mais de 7 anos.
Efeitos do gás natural
A princípio, o gás natural era visto como uma melhor opção para o meio ambiente, uma possível energia mais limpa. Mas hoje já se sabe que a perfuração deixa escapar o gás que está nas rochas e que isso é ainda pior para as mudanças climáticas do que o carvão.
Dentro deste contexto, os Estados Unidos relaxaram suas regras ambientais e, graças ao Fracking, se tornaram o maior produtor de gás natural do mundo.
Mas isso tem implicações globais.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, os Estados Unidos aplicaram sanções que proibiam os russos de venderem o gás para a Europa. Antes disso, a Rússia era o maior fornecedor disponível.
Agora, com o mercado disponível e com o início da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos se tornaram o principal exportador de gás natural para a Europa. Para isso, eles transformam o gás em líquido e enviam em contêineres de navios.
E a Pensilvânia é um dos estados americanos com a maior produção de gás natural, justamente por conta do Fracking.
Eleição dividida nos Estados Unidos
O impacto planetário do Fracking passa longe das preocupações dos eleitores da Pensilvânia, um estado fundamental para as eleições americanas.
Na região de Wade, por exemplo, ao norte do estado, nasce o grande rio Delaware e por conta dele o Fracking nunca foi permitido na área. Mas isso não agradou alguns moradores da região que já tinham alugado suas terras para a exploração de gás:
“Eu já tinha até assinado contrato de aluguel das minhas terras para produção de gás. Nós precisamos de energia e de muito mais no futuro. Pra desenvolver inteligência artificial, por exemplo. Para mim, o sonho americano é você ter sua propriedade e independência”, comenta Tom Shepstone, morador da área.
Quando se tratam dos candidatos à presidência dos Estados Unidos, as opiniões divergem acerca desta contínua exploração do gás natural.
Donald Trump, candidato republicano, transformou o seu apoio ao Fracking em bordão: “Drill, baby, drill” (em português, quer dizer “perfure o solo, baby, perfure”).
Enquanto isso, Kamala Harris, atual vice-presidente e candidata democrata, que há anos afirmava ser contra o Fracking, agora teve que mudar de opinião a fim de conquistar votos da Pensilvânia.
Financeiramente, talvez seja um dos aluguéis mais rentáveis nos Estados Unidos, mas por onde o Fracking passa ele deixa marcas ambientais que podem ser irreversíveis. Marcas que deixam até mesmo o sonho americano com aparência doente.
E quem já viu de perto os efeitos desta exploração diz que o sonho americano já se tornou outra coisa: ar, água e solo saudáveis.