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Você sabia que há um cemitério indígena em uma área residencial nobre de Brasília?


Segundo indígenas, parte do santuário foi destruído em 2009 durante construção do Setor Noroeste. Dois cemitérios estão preservados nas terras demarcadas que ficam ao lado de apartamentos de luxo que custam a partir de R$ 1 milhão. Santuário localizado dentro da terra indígena Santuário dos Pajés no DF.
Fernanda Bastos/g1
Um antigo cemitério indígena resiste em uma área residencial nobre de Brasília, onde apartamentos de luxo, com dois dormitórios, são vendidos por mais de R$ 1 milhão. Os 32,5 hectares do Santuário dos Pajés – demarcados em 2018 – ficam ao lado dos condomínios de luxo do Setor Noroeste, erguido em 2009 (saiba mais abaixo).
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De acordo com lideranças indígenas e historiadores, o santuário, que é uma terra ancestral, registra a presença de povos indígenas desde muito antes da década de 1960 – quando Brasília foi erguida – e servia como rota de passagem e de fuga para indígenas.
Eles contam que no local havia três cemitérios: um deles está embaixo de um prédio residencial (entenda abaixo).
👉 O Noroeste é uma das três regiões do DF com maior número de lançamentos imobiliários, as outras duas são Samambaia e Águas Claras.
👉 O metro quadrado (m²) no Noroeste custa em torno R$ 15 mil, de acordo com o boletim de setembro do Sindicato do Sistema Comércio (Secovi-DF).
Perda de território
Veja o antes e depois da região do Setor Noroeste.
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Antes que o bairro fosse erguido, o Santuário dos Pajés já existia (veja linha do tempo mais abaixo). Segundo o líder jovem Fetxawewe Tapuya Guajajara, o território indígena era equivalente a 108 hectares.
Fetxawewe conta que na negociação para a construção do “novo bairro”, o governo do Distrito Federal (GDF) “ofereceu” 4 hectares para os indígenas, que reivindicaram 50 hectares. Após uma série de conflitos, o Santuário dos Pajés ficou com 32,5 hectares.
Cemitério perdido
O cemitério indígena, para diferentes etnias, é um local sagrado, onde os ancestrais podem descansar, de acordo com o professor de Antropologia da UnB, Gersem Baniwa. Quando são violados, há um duplo sofrimento da comunidade: além da violação do direito à memória, os espíritos estão sofrendo, conta Baniwa.
“Há vida dos espíritos, dos antepassados. Esses espaços simbólicos são muito fortes, são lugares sagrados, é uma força existencial muito grande”, diz o professor.
Segundo Fetxawewe Tapuya Guajajara, um dos três cemitérios indígenas do Santuário dos Pajés está embaixo do prédio residencial construído na quadra 108, bloco A (veja no mapa abaixo).
Locais dos cemitérios indígenas, de acordo com liderança do Santuário dos Pajés.
g1
“Quando estavam cavando o estacionamento, debaixo, mexeram nas ossadas. […] Perdemos o contato com esse cemitério, não vamos fazer [rituais e homenagens] embaixo dos pilotis, não faz sentido”, diz Fetxawewe .
👉 O cemitério é citado em um relatório de discussão feita por acaddmico da Universidade de Brasília (UnB) e foi divulgado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), em 2021. Veja aqui o documento.
O g1 entrou em contato com a Brasal Incorporações, empresa responsável pela construção dos prédios. Em nota, a empresa disse que “não reconhece a existência de cemitério indígena e que jamais constatou a existência de qualquer sítio arqueológico no local”.
Prédios residenciais construídos em cima de cemitério indígena, segundo lideranças do Santuário dos Pajés, no DF
Fernanda Bastos/g1
“Os empreendimentos construídos cumpriram todos os requisitos exigidos em lei e foram integralmente aprovados por todos os órgãos responsáveis”, diz a Brasal Incorporações. A empresa também falou que não realizou acordo com os indígenas.
O g1 também entrou em contato com o governo do Distrito Federal (GDF), com a Terracap (órgão responsável pelas atividades imobiliárias), e a Funai, mas até a publicação desta reportagem não havia recebido resposta.
Fetxawewe Tapuya Guajajara, líder indígena do Santuário dos Pajés e estudante de Sociologia da UnB.
Fernanda Bastos/g1
Construção do Noroeste: linha do tempo
De acordo com Fetxawewe Tapuya Guajajara, os conflitos físicos entre os indígenas, o governo do Distrito Federal e as construtoras aconteceram entre 2008 a 2017. Ocas, plantios e uma escola indígena foram queimadas.
Galerias Relacionadas
Veja a linha do tempo da construção do Noroeste:
🗓️ 2006
Primeiros conflitos: famílias indígenas são ameaçadas para que deixem a região.
🗓️ 2008
Impasse sobre a construção do novo bairro: GDF realiza estudos e tratativas para iniciar as obras. Indígenas reivindicam demarcação e alegam que estavam no local há décadas.
🗓️ 2009
Início da construção: a Federação das Indústrias do Distrito Federal (Fibra) anuncia que o “GDF deu início, no dia 22 de setembro, às obras de infraestrutura do Setor Habitacional Noroeste, o primeiro bairro ecológico do Brasil, com investimentos de R$ 144,8 milhões.”
🗓️ 2011
Em 2011, indígenas fizeram manifestação durante construção do Noroeste, no DF
Obras são suspensas: empresa Brasal Incorporações, uma das responsáveis pela construção, interrompe as obras para tratativas com Funai e indígenas (veja vídeo acima).
Violência: ambientalistas que protestam contra a construção são agredidos com armas de choque por seguranças particulares.
Acordo com indígenas: oito famílias fecham acordo com a Terracap (órgão do GDF) para deixar as casas e aceitam ir para uma área próxima, chamada de Área Especial Cruz. Segundo lideranças, estas famílias não pertenciam à comunidade do Santuário dos Pajés, mas moravam perto do local.
Protesto: cerca de 20 indígenas Fulni-ô e Guajajara param máquinas da construção.
Decisão da Justiça: Judiciário determina que construtoras poderiam continuar as obras, desde que respeitados os 4,1815 hectares onde havia ocupação indígena.
Obras são retomadas: com reforço de 400 policiais, as obras continuam.
🗓️ 2012
Confirmação de acordo: a Justiça Federal publica a decisão que confirma o acordo feito entre as oito famílias indígenas e a Terracap, em 2011.
🗓️ 2017
Indígenas Guajajara na região do Noroeste, em Brasília, em foto de 2017.
Marília Marques/g1
Novo conflito: governo e indígenas entram em conflito físico após abertura da via W10, paralela ao Santuário. Indígenas dizem que funcionários da Terracap derrubaram parte da vegetação nativa que estava no perímetro reivindicado na Justiça. O líder jovem Fetxawewe Tapuya Guajajara chegou a ser arrastado por um trator.
🗓️ 2018
Acordo sobre a demarcação: é estabelecido um acordo oficial entre os indígenas do Santuário e o governo do Distrito Federal (GDF). A demarcação é referente à 32,5 hectares de área protegida para os indígenas e famílias perdem mais de 75 hectares.
Violações de cemitérios indígenas no país
Cemitério indígena abandonado é palco de tiroteio na zona norte de Manaus (AM).
Ive Rylo/G1 Amazonas
Os cemitérios, além de serem considerados sagrados, são parte do patrimônio indígena – que é composto pela terra, em sua dimensão territorial e em seus usos – de acordo com as normas e os costumes das sociedades indígenas, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O órgão, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e que defende os direitos dos povos indígenas, faz todos os anos o Relatório da Violência contra os Povos Indígenas no Brasil. O g1 reuniu os relatórios dos últimos 15 anos – de 2009 a 2024 – e apurou a quantidade de violações aos cemitérios indígenas do país (veja gráfico abaixo).
👉 Entre os 23 casos dos últimos 15 anos, há denúncias de construção de usinas hidrelétricas e rodovias, instalação de minérios e plantação de soja em cima dos cemitérios.
👉 Há casos em que os cemitérios foram invadidos, loteados ou transformados em pastagem de gado. Há ocorrências em que as áreas sagradas não entraram na demarcação da terra indígena.
👉 Algumas etnias precisaram abandonar o território onde os ancestrais estavam enterrados após ameaças. Em 2023, uma indígena entrou em um canavial, em Mato Grosso do Sul, para visitar o cemitério dos seus parentes e foi encontrada morta após alguns dias, de acordo com o Cimi.
Para o professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), Gersem Baniwa, a principal consequência da violação dos cemitérios indígenas é o sofrimento para as comunidades originárias.
“[O sofrimento] é incurável, irreparável. Sofrimento para quem continua existindo e sofrimento para os espíritos e antepassados que foram enterrados ali. Muitos cemitérios no Brasil afora foram ocupados, foram destruídos […] resta a dor dos que vivem ao sentir a violação do lugar que é um lugar sagrado”, diz o professor Gersem Baniwa.
Cacique Raoni e a luta pela demarcação da terra Kapôt Nhinore, onde se encontra um antigo cemitério indígena
Mapa mostra região do Kapôt Nhinore e Parque do Xingu.
Agência Câmara
Uma das lutas pela demarcação no Brasil, atualmente, é da terra Kapôt Nhinore, em Mato Grosso (MT), do povo Kayapó. No local, existe um cemitério ancestral, onde foi sepultado o corpo do pai do cacique Raoni Metuktire – líder do povo Kayapó que ficou conhecido mundialmente pela luta por direitos indígenas.
No ano passado, a Funai apresentou um estudo sobre a terra indígena Kapôt Nhinore. Em entrevista ao g1, na última quinta-feira (31), o cacique Mẽbengôkre, do povo Kayapó e representante do Instituto Raoni, contou que o estudo deve ser entregue ao Ministério da Justiça, e que a expectativa é que a pasta apresente uma portaria que trate da demarcação da terra.
Mẽbengôkre diz que o cemitério era utilizado há anos pelo seu povo. Na década de 1950, seu avô faleceu durante uma epidemia de gripe e foi enterrado lá. Segundo ele, entre as décadas de 1960 e 1970 a região foi invadida por agricultores.
“O branco matou meus dois tios”, diz Mẽbengôkre.
O cacique conta que depois da invasão, seu povo foi para o território indígena do Xingu, também em Mato Grosso. Eles chegaram a revisitar Kapôt Nhinore, mas Mẽbengôkre diz que é perigoso.
A morte para os indígenas
O Dia de Finados, celebrado neste sábado (2) não é uma data que faz parte da cultura indígena, mas foi incorporada por alguns povos como sendo mais um momentos para homenagear parentes que partiram, segundo o professor indígena Gersem Baniwa do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB).
“Não há um dia específico, […] mas existem ciclos, períodos lunares, com mais chuvas, com menos chuvas, períodos da natureza que se celebra a passagem [dos entes] para lembrar e comemorar as pessoas. Não pela morte delas, mas por aquilo que foram, pela importância que tiveram na vida”, diz o professor.
👉 Para os povos originários, a morte é vista como uma passagem e não como o fim da vida.
O professor explica que, para muitas etnias, a morte é uma passagem de uma dimensão para outra em uma mesma vida, e que a convivência com espíritos ancestrais é cotidiana para os indígenas, já que a ancestralidade está na natureza e em seus territórios.
“Para os modos de pensar indígenas não têm relevância essa ideia de outro mundo, o que seria o céu na visão cristã. Só há um mundo, onde vivemos, humanos e não humanos, um mundo plural, diverso, com vários níveis, várias camadas. A morte não é necessariamente deixar esse mundo para ir para outro mundo, é uma passagem dentro do mesmo mundo, vai se passar de uma vida biológica para outra dimensão da vida, para outras formas de existência espiritual. […] Quando se morre se volta a origem a sua memorialidade que é a natureza, o seu território”, diz o professor Gersem Baniwa.
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