Desde março, 8 médicos do programa de residência em anestesiologia da Santa Casa estão em processo de exclusão após alegarem irregularidades no programa e paralisarem as atividades em protesto. Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belem.
Cristino Martins/Agência Pará
O Ministério Público Federal e Estadual e entidades médicas apuram denúncias na residência em anestesiologia da Santa Casa, no Pará. Desde março, 8 residentes estão em processo de exclusão após denunciarem irregularidades no programa e paralisarem as atividades em protesto.
Os 8 profissionais, sendo no total 12 residentes no programa, estavam com as atividades suspensas desde a abertura do processo de exclusão, em março desde ano. Porém, no dia 4 de abril, a Coordenação Geral de Residências em Saúde determinou que os residentes retornem às suas atividades enquanto apura o mérito da denúncia.
Em nota, a Santa Casa informou que as afirmações de irregularidades alegadas pelos residentes de anestesiologia não procedem. A instituição diz ainda que “foram afastados preventivamente somente os que se recusaram a cumprir as normativas estabelecidas na Santa Casa”.
Para uma das residentes, que preferiu não revelar a identidade por medo de represálias administrativas, o sentimento era de profundo desrespeito, o que motivou as denúncias dos profissionais sobre o que eles alegam ser irregularidades – veja os detalhes mais abaixo.
“Eu me senti profundamente desrespeitada, porque antes de sermos residentes, somos médicos. Temos história de vida, de abdicação, de estudo e de batalha. Você chegar em uma instituição em que você deposita seu sonho, acreditando e confiando em atender a população em nome do SUS, e isso ocorre dessa forma […] sem considerar que a população necessita desses profissionais”, lamentou.
Comissão ligada ao MEC apura denúncias
A decisão da Coordenação Geral de Residências, ligada ao Ministério da Educação (Mec), para que os residentes voltem aos seus postos de trabalhao, está presente na súmula da última reunião da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), ocorrida em 29 e 30 de março e publicada em 4 de abril.
Segundo esta súmula, o programa em anestesiologia da Santa Casa está sob supervisão da CNRM, na modalidade diligência (investigação). No prazo de até 30 dias, avaliadores externos devem visitar localmente o programa para verificar irregularidades.
Durante a diligência, o programa da Santa Casa está proibido de fazer processo de seleção para novos médicos residentes. Se a CNRM identificar alguma irregularidade, poderá adotar medidas sanatórias e/ou punitivas, podendo, inclusive, descredenciar o programa.
Publicada no dia 4 de abril, a decisão da Coordenação Geral também determinou que o programa de anestesiologia da Santa Casa, que passou por dois gestores no último ano, seja gerenciado pela presidência da Comissão Estadual de Residência Médica do Pará (Cerem).
Cobranças de anuidades
Segundo os residentes, o programa de residência em anestesiologia da Santa Casa vem passando por mudanças desde março de 2022, a partir de um processo de integração com outros programas de anestesiologia de Belém.
“Foi mandado um e-mail dizendo que haveria primeiramente uma integração das atividades teóricas. Depois as mudanças foram aumentando. Passaram a ser atividades práticas, a forma de avaliação, a forma de frequência, etc”, explica a residente.
Para os alunos algumas dessas mudanças são irregulares por não terem amparo no regimento interno do programa, como a exigência de filiação à Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) e à Sociedade de Anestesiologia do Pará (Saepa) para poder fazer atividades de classe, como provas.
Outra residente do programa, que também preferiu não se identificar, afirma que “durante uma das provas, uma residente de outro serviço foi convidada a se retirar da sala porque não tinha pago as anuidades”.
Em mensagem enviada aos residentes, em um grupo de aplicativo de mensagem, a então supervisora do programa de residência em anestesiologia, Lena Cláudia Maia Alencar, diz que todos os médicos devem fazer o pagamento.
“Atenção!! Todos devem pagar suas anuidades até o dia 02/12 para poderem fazer as provas necessárias para passarem ou terminarem a residência. Quem for pagando me mandem por gentileza o comprovante”, escreve.
Bruno Carmona, presidente da Santa Casa, e na época professor da residência em anestesiologia, enviou aos estudantes em fevereiro de 2022 um documento sobre as anuidades da SBA e Saepa.
O documento solicita que seja enviada “o comprovante de pagamento das anuidades obrigatórias” e que os residentes do 1º ano “matriculados deverão afiliar-se à Saepa e SBA”.
Ainda segundo esta residente, Bruno Carmona comunicou em um grupo de aplicativo de mensagem com médicos residentes da Santa Casa que quem não estivesse quite com a Sociedade de Anestesiologia do Pará (Saepa) iria receber uma notificação formal.
Desde de março de 2023, Bruno Carmona ocupa interinamente a supervisão do programa de residência em anestesiologia da Santa Casa. Ele também é diretor científico da Saepa.
A residente diz que os alunos têm ciência da importância e dos benefícios de se associarem à SBA e à Seapa. Porém, ela afirma que não há amparo legal na questão de obrigatoriedade de pagamento para que os residentes possam fazer uma prova dentro do programa de residência da Santa Casa.
Os médicos residentes também criticam a ausência da então supervisora Lena Alencar. Eles dizem que o supervisor do programa tem que ser um preceptor, ou seja, um professor.
“Pelo regimento interno da Santa Casa e pelo Programa Nacional de Residência Médica, eles devem estar presentes. Um professor não tem como te avaliar, não tem como saber suas necessidades, se ele não está ali contigo. E ela estava bastante ausente”, afirma.
Ainda, segundo os residentes, nesse período algumas funções da supervisão foram delegadas para o médico Bruno Carmona, que passou a fazer determinadas mudanças.
“Algumas das mudanças que ele fez, por exemplo, foi tirar dos residentes do terceiro ano um rodízio no Hospital das Clínicas Gaspar Vianna, que é referência em cardiologia pelo SUS”, diz .
Paralisação
Os residentes dizem que diante da situação tentaram, por diversas vezes, resolver a questão institucionalmente. Eles alegam que até conseguiram se reunir com a coordenação da Comissão de Residência Médica (Coreme) da Santa Casa, mas não houve avanço.
“Fizemos várias tentativas de apontar as irregularidades, de tentar conversas e reuniões. Depois de várias tentativas de resolver internamente, de forma mais amigável, a gente viu como única solução fazer uma paralisação”, explica a residente.
O aviso de paralisação foi informado à Coreme, ao Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa) e ao Conselho Regional de Medicina (CRM). No período de 3 a 13 de março, os médicos residentes da Santa Casa paralisaram as atividades.
No dia 9, a então supervisora Lena Alencar se reuniu com os residentes. Participaram também a coordenadora da Coreme, Érica Cavalcante; o presidente da Santa Casa, Bruno Carmona; Vitor Fonseca, procurador jurídico da instituição; e representantes do Sindmepa. A reunião terminou sem consenso entre as partes.
Em reunião realizada no dia 16 de março pela Comissão de Residência Médica foi determinado o desligamento dos profissionais. Nenhum dos 8 residentes afastados foi convocado para a reunião.
Para a residente que preferiu preservar a identidade, o Conselho Nacional de Residência Médica determina que os residentes devem ter um representante nas reuniões da Coreme.
“Esse representante atua dentro das atas das reuniões, levando demandas e questões dos residentes, sendo esse um porta-voz e isso não existe na Santa Casa”, afirma a médica.
Segundo a ata da reunião, ao completar 10 dias de ausências não justificadas, referente ao período de paralisação, foi solicitada a aplicação de pena máxima prevista no regimento: a exclusão do programa.
De acordo com a Santa Casa, as irregularidades denunciadas pelos residentes não procedem e que os médicos foram afastados preventivamente porque se recusaram a cumprir as normativas estabelecidas na instituição, conforme definido pelo regimento interno, enquanto aguardam a conclusão dos processos disciplinares.
A Santa Casa diz que mesmo com o afastamento de 8 médicos residentes, “o atendimento a população segue sem prejuízos e continua sendo realizada por seus médicos anestesistas” pois a instituição “não depende de médicos residentes para seu pleno funcionamento”.
Medidas do MPF e mais investigações
Suspensos das atividades na Santa Casa durante o decorrer do processo de exclusão do programa, os residentes procuraram diversos órgãos e representações para denunciar as mudanças na qual alegam serem irregulares.
Os residentes fizeram denúncias no Ministério Público do Pará (MPA) e Ministério Público Federal (MPF). O Conselho Regional de Medicina (CRM), o Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa), a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) e a Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) também foram notificados da situação.
Por conta desse processo, a residente diz que o grupo de médicos acabou desencadeando transtornos de ansiedade e depressivos. “Dos oito, só dois de nós não estão tomando medicação prescrita por psiquiatra”, afirma.
Em despacho emitido no dia 4 de abril, o MPF informa que apura supostas ilegalidades relatadas pelos residentes, como abuso de poder da administração da Santa Casa, imposição de carga horária inadequada, constrangimento público de quem apresenta discordâncias e ameaças de desligamento e retaliação.
Em reunião com o presidente da Santa Casa, Bruno Carmona, a então supervisora de anestesiologia, Lena Alencar, o procurador autárquico da instituição e a procuradora do MPF, Nicole Costa, ficou acertado os seguintes encaminhamento:
A Santa Casa se compromete a “se retratar acerca da exigência de filiação dos residentes às Sociedades Brasileira e Paraense de Anestesiologia, esclarecendo que tal ato não é obrigatório ou necessário para a conclusão da residência e exercício da especialidade”.
Além disso, apresentar alternativas à forma de frequência utilizada, para que “afaste o risco de conflito de interesse causado pelo fato do presidente da Santa Casa ser sócio da empresa desenvolvedora. Em caso de impossibilidade, apresentar justificativa detalhando a pesquisa realizada, de forma a demonstrar que não há alternativa viável”.
O Ministério Público Federal também informa no despacho que o “desligamento dos residentes “acarretaria prejuízo ao serviço público de saúde prestado pela Santa Casa, considerada a indispensabilidade do papel desempenhado pelos residentes”.
Já o Ministério Público do Pará (MPPA) disse por meio de nota que instaurou notícia de fato sobre a denúncia. O MPPA ressaltou que a demanda ainda está em fase inicial de apuração, atualmente na análise de cada situação alegada, para determinar os encaminhamentos devidos em relação a cada aspecto.
O Sindicato dos Médicos do Pará disse que após análise jurídica preliminar, caso se demonstre a veracidade dos fatos, “haveria violação dos regulamentos do programa de residência. A questão mais grave seria a extrapolação do mandato da supervisora”.
Para o Sindmepa, “algumas questões até podem estar dentro do poder diretivo do programa, mas a falta de transparência torna legítima a cobrança dos residentes”.
O Sindmepa informou que “segue acompanhando, para auxiliar os residentes, visto que contribuir para as boas práticas da Medicina, inclusive no que tange a formação médica, está entre nossas atribuições regimentais”.
A Sociedade Brasileira de Anestesiologia informou que instaurou “procedimento administrativo interno visando apurar todos os fatos na maior brevidade possível”. A SBA disse que tanto “a Diretoria quanto os Departamentos Científico e de Defesa Profissional estão diretamente envolvidos nessa apuração e que tudo será esclarecido e as medidas necessárias serão tomadas caso seja identificada alguma irregularidade”.
O Ministério da Educação, via Comissão Nacional de Residência Médica, e a Sociedade de Anestesiologia do Pará (Saepa) também foram procurados pelo g1 Pará mas não retornaram até a publicação desta reportagem.
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