Imagem rara impressiona; é a primeira evidência documentada sobre a ocorrência dessa interação entre peixes de água doce e cobras aquáticas. Entenda por que o dourado segue a sucuri-verde
Fernando Maydana
Há dois metros de profundidade, em um rio de água doce que mais parece um aquário, de tão cristalino, um dourado (Salminus brasiliensis) persegue sorrateiramente uma sucuri-verde (Eunectes murinus) que serpenteia no fundo entre galhos e troncos, em busca de comida.
Mas o que será que o peixe pretendia com essa perseguição? Antes de apresentarmos uma possível resposta, é importante entender que essa é uma cena rara, que em quinze anos, foi flagrada e documentada por pesquisadores apenas quatros vezes. As imagens inéditas foram feitas no rio Olho d’Água, no município de Jardim, no Mato Grosso do Sul e fazem parte de um artigo publicado por pesquisadores brasileiros em uma revista científica internacional.
Dourado segue sucuri embaixo d’água; Veja o vídeo
Apesar de ser um predador voraz, tudo leva a crer, que o dourado no encalço da sucuri não pretendia atacar a cobra. “Em todos os registros, os dourados permaneciam próximos da cauda, apenas seguindo as sucuris. Eles estavam sempre atrás, ou, ao lado. Nunca avançavam, evitando se aproximar da cabeça da cobra. Esse comportamento indica que o peixe não pretendia atacar a serpente”, explica um dos autores da publicação, o professor José Sabino, do curso de Ciências Biológicas de UEMS, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.
A principal hipótese para essa perseguição é que o dourado, na verdade, estava de “olho”, no alimento da “concorrente”. “Assumimos que o peixe seguiu a sucuri-verde para possivelmente atacar os peixes, ou outras presas que escapam de uma tentativa de predação da cobra, ou ainda, o dourado poderia se aproveitar dos peixes menores que são atraídos por essa grande perturbação no substrato que a sucuri provoca. A cobra mexe muito na areia que está no fundo do rio e isso pode assustar animais que vivem enterrados, que estão protegidos no leito, atraindo pequenos peixes atrás de alimentos. Esses peixinhos são presas do dourado”, explica Sabino.
Em todos os registros, os dourados permaneciam próximos da cauda, apenas seguindo as sucuris. Eles estavam sempre atrás, ou, ao lado.
Fernando Maydana
Apesar dos registros raros, os pesquisadores ainda não conseguiram flagrar o dourado predando peixes que escaparam de ataques da sucuri-verde. “Não é possível garantir categoricamente essa associação entre esses predadores. Mas, nossas observações são registros raros e incomuns entre essas duas espécies aquáticas sul-americanas.
Com o aumento de atividades turísticas em ambientes silvestres, a possibilidade de mais pessoas registrarem a fauna subaquática pode nos auxiliar no estudo, o que chamamos de ciência cidadã, que tem forte apelo de colaboração entre não especialistas e os cientistas. Acreditamos que o surgimento de novas imagens dessas interações ajude a confirmar a hipótese sobre essa relação entre o dourado e a sucuri-verde”, diz Sabino.
Estratégia de caça em águas cristalinas
No rio onde foram feitos os flagrantes não há turbidez, o que dificulta a caça dos predadores. Nessas condições de alta transparência da água, as presas conseguem fugir mais rápido, porque percebem a aproximação dos predadores com mais facilidade, o que exige uma estratégia de caça mais “sofisticada”.
É muito comum nessa região, o dourado predar os peixes, principalmente a piraputanga (Brycon hilarii), nos períodos mais escuros do dia. Os ataques acontecem principalmente de madrugada, ou, no crepúsculo, horários em que fica mais difícil para as presas perceberem o ataque.
Os pesquisadores acreditam que a perseguição do dourado a sucuri-verde, seja uma estratégia para se aproximar de outros peixes, assim: “como quem não quer nada”, aproveitando da situação para dar o bote em um momento de distração da presa.
“A piraputanga é uma presa ‘difícil’, de grande porte, excelente nadadora e muito forte. O dourado ataca piraputangas principalmente quando elas estão focadas na busca de alimento. Por exemplo, quando caem frutos na água, as piraputangas focam na própria alimentação. É um comportamento tão intenso, uma espécie de frenesi em busca de comida, que elas se distraem e o dourado se aproveita para atacar”, comenta Sabino.
‘Perseguição’ tem nome
Durante as observações, os pesquisadores perceberam que carás, joaninhas, lambaris, piranhas e curimbatás também chegaram a seguir a sucuri-verde. A hipótese é que essas outras espécies façam isso pelo mesmo propósito dos dourados, ou seja, para se beneficiarem de algum “alimento” que eventualmente escape da cobra.
Os pesquisadores flagraram em vídeo, a curiosa cena de presa e predador seguindo a sucuri-verde. Embora mais distante, uma piraputanga também foi atrás da cobra, enquanto o dourado fazia o mesmo, só que mais próximo. “Eu presumo que neste caso, se o dourado tentasse atacar, a piraputanga fugiria rapidamente, ela não estava distraída se alimentando”, completa Sabino.
Esse comportamento de animais que seguem outros em busca de alimento é conhecido por várias formas: associação seguinte, associação de alimentação de seguidor nuclear, ou, comportamento de seguimento. “É quando um animal aquático, denominado de ‘nuclear’, escava, ou de alguma outra forma mexe bastante no substrato, agitando o fundo do rio atrás de comida.
Neste caso, é a sucuri-verde. Essa espécie está fazendo o que chamamos de forrageando. Aí, uma ou mais espécies oportunistas, que chamamos de ‘seguidores’, nesses registros nos referimos ao dourado, se aproveitam de pequenos animais para se alimentar”, explica outro autor do trabalho, o pesquisador Domingos Garrone Neto, coordenador do Laboratório de Icitiologia e Conservação de Peixes Neotropicais da Unesp de Registro.
Essa é a primeira evidência documentada sobre a ocorrência dessa interação entre peixes de água doce e cobras aquáticas.
Dourado segue sucuri embaixo d’água; Veja o vídeo
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