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Por que o novo Juiz da Lava Jato foi afastado? O que acontece com as decisões? Entenda


Relator que analisou o caso disse que ‘existia muita semelhança’ entre voz do juiz e de homem que ligou para filho do desembargador Marcelo Malucelli, João Malucelli. João é sócio de Sergio Moro. Eduardo Fernando Appio
Reprodução/Justiça Federal
O afastamento cautelar do juiz federal Eduardo Appio, que estava à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba desde fevereiro deste ano, foi motivado por uma ligação telefônica de um número desconhecido, que tratava de questões de imposto de renda, conforme relatório do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
A ligação em questão, que o tribunal entendeu como “ameaça”, foi feita para João Eduardo Barreto Malucelli, sócio do senador Sergio Moro (União Brasil) e filho do desembargador Marcelo Malucelli.
O relatório foi obtido com exclusividade pela jornalista Andréia Sadi, da GloboNews.
Na 13ª Vara, Appio respondia pelos processos da Lava Jato desde fevereiro de 2023.
Navegue nesta reportagem:
O que sustentou o afastamento, segundo o TRF-4
O que acontece com as decisões proferidas por Appio
Polícia Federal fez perícia para cruzar voz de homem com a de Appio
O que disseram desembargadores que discordaram do afastamento
Entrave de Appio com Sergio Moro e Deltan Dallagnol
Histórico de decisões de Appio
Argumentação para o afastamento de Appio
O afastamento de Appio ocorreu na segunda-feira (22) em uma apuração do tribunal sobre “fatos que podem configurar infrações disciplinares”.
O relator que pediu o afastamento cautelar foi do corregedor regional Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, que teve o parecer acompanhado pela maioria antes da apuração sobre o caso ser concluída e, também, antes de Appio apresentar defesa sobre o caso.
A ligação telefônica que motivou a apuração contra Eduardo Appio foi recebida por João Malucelli em 13 de abril. Na ocasião, um homem se apresentou a Malucelli como Fernando Gonçalves Pinheiro, quem o TRF-4 acredita ser Appio.
“Tendo tais aspectos em consideração, conclui-se que, ainda que se tenha que apurar a infração e examinar a defesa do magistrado, o caso parece ser o de que seu comportamento seja caracterizado como ‘procedimento incorreto’.”
O corregedor considerou a ligação telefônica “suspeita” porque, além da ausência do identificador de chamada, o homem que fez a ligação disse ser “servidor da área de saúde da Justiça Federal”, o que o corregedor disse não ser verdadeiro.
“O interlocutor mencionou ter consultado bases de dados do imposto de renda do desembargador federal e se dirigiu diretamente ao filho desse desembargador, fazendo também menção a informações que não eram corretas e se contradiziam, dizendo que o número do celular pertenceria ao desembargador e, depois, ao seu filho; e a ligação foi abruptamente encerrada pelo interlocutor, sem que houvesse alguma justificativa para que a ligação tivesse sido feita ou fosse daquela forma encerrada”, disse.
O nome de Appio passou a ser associado à ligação telefônica por um conjunto de fatores, na avaliação do corregedor. São eles:
Segundo o corregedor, um dia antes da ligação, Appio foi notificado sobre correições parciais contra ele em um caso que tinha como relator o pai de João Malucelli;
No dia da ligação, “em horário muito próximo” ao que João Malucelli foi contatado por telefone, “apurou-se que o juiz federal Eduardo Fernando Appio acessou um processo judicial duas vezes com dados do advogado”.
“A partir desses indícios relevantes, pôde-se perceber existir muita semelhança entre a voz do interlocutor da ligação telefônica suspeita e a do juiz federal Eduardo Fernando Appio”, disse o corregedor.
O voto do relator traz, ainda, trecho da conversa transcrita entre João Malucelli e o homem que ligou para ele.
Leia abaixo o trecho da ligação disponível no relatório:
Voz 1: Fernando Gonçalves Pinheiro, o senhor pode pode ligar novamente pra cá, não não há problema nenhum, eu só preciso eh… que o senhor passe eh… o telefone ou passe o contato pro pro doutor Marcelo Malucelli em relação aos extratos aqui do imposto de renda referente aos filhos, é uma coisa do passado, é um resíduo do passado, que ele tem um crédito que pode abater no imposto de renda, pode computar em favor.
Voz 2: ‘Hum’ entendi, mas olha me me desculp…
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: Me desculpe, o senhor tá ligando sem ID do chamador, eu ‘num’ ‘num’ não faço ideia quem quem seja.
Voz 1: ‘Ah’ mas o s… o senhor, tudo bem. Mas consta o senhor aqui como sendo um dos filhos e consta aqui o seu número. Então nós estamos ligando pra isso.
Voz 2: ‘Hum’ mas assim, eu não eh… essa história tá bem estranha, viu? Me desculpe, com todo respeito, mas eh… se o Marcelo…
Voz 1: Como é que eu teria o seu telefone aqui eh… é uma questão só de imposto de renda. Ah se o senhor quiser eu ligo diretamente pro seu pai, não tem problema ligo (incompreensível)…
Voz 2: (Incompreensível)
Voz 1: Não há problema nenhum.
Voz 2: Então, então acho melhor o senhor fazer isso, né?
Voz 1: Então eu faço isso, ligo diretamente pro seu pai e faço isso, eu só não queria incomodar, que aqui consta o seu número, seu nome, seu CPF e e a questão de resíduos do passado de despesas médicas, a ideia era não incomodar. Mas se o senhor prefere assim, liga… nós ‘tamo’ só utilizando aqui um sistema aqui via Skype pra economizar valores da Justiça Federal.Não não há não há… se não aparece é só por isso. Mas eu ligo pra ele diretamente, não há problema nenhum.
Voz 2: É, sim, é que o senhor ligou e falou…
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: O senhor ligou e falou, eu gostaria de falar com o Marcelo Malucelli, agora o senhor tá falando que aparece aí que eu sou filho. Então assim, fica fica meio ambíguo, né? Até ah…
Voz 1: É ah… o contato que eu tenho do do do doutor Marcelo Malucelli deve ser um contato antigo, aparece o seu telefone, então por isso que eu li… nós estamos ligando…
Voz 2: Não, esse número nunca foi do Marcelo Malucelli, senhor, me me perdoa. E também, assim, eh… eu eu faz muito tempo já que eu não também não não tenho qualquer tipo de cooperação de convênio junto a justiça federal por conta eh… de dependência de servidor. Eu já sou maior de idade faz tempo e ‘num’ não tenho convênio algum.
Voz 1: Não, sim, sim, mas aqui… sim, sim, isso aqui é uma data antiga, eh… o senhor tem vinte e oito anos de idade, isso aqui deve ter feito de coisa de mais de dez anos atrás, com certeza, dez, quinze anos atrás. Pelo menos aqui as datas que se refere aqui, dois mil um, dois mil e dois, isso é coisa antiga.
Voz 2: Ah, então tá bom. Então o senhor entra em contato com ele, beleza?
Voz 1: Mas se o senhor prefere eu ligo pro seu pai diretamente, eu só não gostaria de incomodá-lo, só isso.
Voz 2: Tá bom, claro. Pode ligar então. Faça o que o que for melhor.
Voz 1: Então eu ligarei, digo que eu falei com o senhor, digo que falei com o senhor e que o senhor me autorizou a ligar pra ele, incomodá-lo no próprio tribunal.
Voz 2: Ah pode pode falar. Incomodá-lo!Qual é o nome do senhor mesmo? Fernando Pinheiro Gonçalves, né?
Voz 1:Isso.
Voz 2: Ah, tá.
Voz 1: Pode pode chamar aqui no setor de saúde que nós estamos aqui.
Voz 2: Setor de saúde.
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: Setor de saúde, Fernando Pinheiro Gonçalves. Tem certeza que esse é o nome do senhor?
Voz 1: Tenho certeza absoluta
Voz 2: Então tá bom.
Voz 1: E o senhor tem certeza que que não não tem aprontado nada?
Voz 2: Ah agora tá, tá certinho. Aprontado?
Voz 3: Meu Deus! Li…
O que acontece com as decisões proferidas por Appio
Segundo o relatório do corregedor, a decisão do TRF-4 não afeta despachos feitos por Appio nos últimos meses.
“O expediente que ora se apresenta à Corte Especial Administrativa está limitado à conduta extraprocessual do juiz federal Eduardo Fernando Appio, logo após ter sido notificado acerca das primeiras correições parciais contra si deferidas”.
Polícia Federal foi acionada para perícia, segundo TRF-4
Segundo o corregedor, foi solicitado à Polícia Federal (PF) a realização de perícia para “comparação do interlocutor da ligação suspeita com aquele magistrado federal”.
O resultado, de acordo com o voto, não deu 100% de certeza de que a voz pertenceria a Appio, mas disse que “se corrobora fortemente a hipótese”.
“A partir da comparação da voz do interlocutor da ligação suspeita com a voz do juiz federal Eduardo Fernando Appio se ‘corrobora fortemente a hipótese’ de que a voz presente no vídeo que gravou a ligação telefônica recebida pelo filho do desembargador federal Marcelo Malucelli fora produzida pelo juiz federal Eduardo Fernando Appio”.
Para o corregedor, Appio faltou “quanto ao dever de integridade pessoal e profissional”.
Cândido destacou, por exemplo, que o magistrado não poderia fazer “uso dos sistemas informáticos a que tem acesso de modo privilegiado” para conseguir números telefônicos.
Cândido também afirmou que magistrados não podem fazer ligações com números bloqueados ou com falta identidade.
“[…] parece incorrer em falta ao dever de conduta irrepreensível”.
O que disseram desembargadores que discordaram do afastamento
Quatro desembargadores foram contrários ao afastamento de Eduardo Appio da 13º Vara de Curitiba.
Um deles, Roger Raupp Rios, disse que o magistrado deveria ser ouvido antes da decisão.
“Não se anunciam presentes as circunstâncias apontadas como justificadoras de deliberação sem oportunizar, ainda que de modo sumário, o exercício do direito de defesa e do contraditório”.
Destacou, também, que o voto do relator não trata do “exercício da jurisdição, nem de eventuais outras condutas do magistrado [Appio]”.
Antes de ser afastado, Appio foi alvo de Sergio Moro
Em 28 de março, a defesa de Sergio Moro protocolou um pedido de que Eduardo Appio se afastasse de qualquer decisão em processos da Lava Jato até uma apuração de suspeição.
A ação foi protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF) no dia 15 de março deste ano, conforme petição, mas não teve movimentação processual.
Após a notícia de afastamento cautelar de Appio, Moro disse, no Twitter, que “nunca tinha ouvido falar, na história judiciária brasileira, de um caso no qual o juiz de um processo teria ligado ao filho de um desembargador, que revisava suas sentenças, fingindo ser uma terceira pessoa para colher dados pessoais e fazer ameaças veladas.”
Nos últimos meses, ações de Appio também refletiram no deputado federal cassado Deltan Dallagnol (Podemos). O juiz foi o responsável por encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) acusações de perseguição que o réu por lavagem de dinheiro, Rodrigo Tacla Duran, fez contra Dallagnol.
O mesmo acusado também acusou Moro e extorsão. Na época, Moro e Dallagnol negaram as acusações.
Histórico de decisões
Appio assumiu o cargo em fevereiro de 2023. Desde então, ele expediu decisões como a prisão do delator da Lava Jato Alberto Youssef e a anulação da condenação do ex-governador do Rio Sérgio Cabral por suposta propina em obras do Comperj. Ambos os casos foram revistos e anulados pelo TRF-4.
Relembre, abaixo, alguns atos do juiz:
10 de março: determinou que o ex-deputado e ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha entregasse seis carros dele confiscados durante a operação Lava Jato.
13 de março: determinou que o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci entregasse à Justiça carros de luxo que estavam sob posse dele.
16 de março: revogou a ordem de prisão preventiva do advogado Rodrigo Tacla Duran, acusado na operação de lavagem de dinheiro para a Odebrecht. A medida derrubava uma ordem judicial de prisão expedida contra o advogado pelo ex-juiz Sergio Moro.
20 de março: determinou a prisão preventiva do doleiro Alberto Youssef por afirmar que Youssef tinha dívidas com a Receita Federal e que o doleiro tem caráter voltado a “crimes do colarinho branco”. Depois de um dia preso, Youssef recebeu ordem de soltura do desembargador Marcelo Malucelli, TRF-4.
27 de março: Intimou o advogado Rodrigo Tacla Duran para depor na Justiça Federal, no âmbito da operação Lava Jato.
2 de maio: anulou a condenação do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, por suposta propina obras do Comperj, que considerou que a atuação no caso do ex-juiz Sérgio Moro, que era o responsável pela Lava Jato, foi parcial. No dia 16, o TRF-4 derrubou a decisão.
3 de maio: determinou a retirada do sigilo da delação premiada de Pedro Barusco, ex-gerente da Petrobras condenado na Operação Lava Jato por lavagem de dinheiro, associação criminosa e corrupção.
16 de maio: atendeu a um pedido da defesa do ex-ministro Antonio Palocci e marcou uma audiência para ouvi-lo sobre “eventuais abusos e prática de tortura” durante a operação Lava Jato. Dois dias depois, o TRF-4 anulou a decisão dizendo que Appio não tinha competência para determinar a oitiva.
19 de maio: o deputado federal cassado Deltan Dallagnol (Podemos) foi convocado pelo juiz para prestar depoimento na condição de testemunha sobre declarações do advogado Rodrigo Tacla Duran, réu por lavagem de dinheiro para a empreiteira Odebrecht em processo da força-tarefa.
20 de maio: absolveu o réu Raul Schmidt Felippe Junior. Ele era acusado de ser operador financeiro ao pagar propina a ex-diretores da Petrobras. Appio entendeu que o Ministério Público Federal teve acesso aos dados bancários de Schmidt de forma ilegal.
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