Capa do álbum ‘Refazenda’, de Gilberto Gil
João Castrioto com arte de Aldo Luiz
♫ MEMÓRIA
♪ Segundo álbum solo de estúdio lançado por Gilberto Gil após a volta do exílio do artista baiano na Inglaterra, Refazenda representa mergulho do artista no interior. E interior, no caso, significa tanto o universo ruralista quanto a introspecção existencial. O retiro espiritual.
“Dentro de si mesmo / Mesmo que lá fora / Fora de si mesmo / Mesmo que distante / E assim por diante / De si mesmo, ad infinitum”, versou Gil, jogando poeticamente com as palavras na letra de Meditação, canção que encerra o álbum Refazenda.
Gravado em meados de 1975 e lançado naquele mesmo ano pela gravadora Philips / Phonogram, Refazenda completa 50 anos em 2025 com o mesmo vigor e (quase) com a mesma importância do sucessor visionário Refavela (1977), segundo título da trilogia RE, fechada em 1979 com Realce, álbum que marcou a incursão do cantor, compositor e músico baiano no brilho da disco music vigente na época.
Refazenda é o outro lado de Expresso 2222 (1972), álbum mais exteriorizado gravado por Gil após voltar para o Brasil em janeiro de 1972 com as informações do rock apreendido na estada forçada em Londres. No trilho urbano de Expresso 2222, Gil transitou entre referências de rock, ecos tropicalistas e a vivacidade da música nordestina.
Refazenda é o caminho de volta, o mergulho de Gil para dentro, para a alma interiorana, para o sertão nordestino, para a fazenda imaginária exposta no neologismo do título do álbum feito com direção de produção do então iniciante Marco Mazzola e com coordenação musical e arranjos de Perinho Albuquerque – como consta na ficha técnica original do LP, cuja capa expõe fotos de Gil feitas por João Castrioto e enquadradas na arte do designer Aldo Luiz.
Em Refazenda, disco de repertório essencialmente autoral, Gil dá voz a onze composições inéditas sob a inspiração da música, “musa única”, como celebrada pelo artista no verso de Ela, tema que abre o álbum com ar pop que se diluiu ao longo do disco.
A única música sem a assinatura de Gil é Tenho sede, canção da lavra fina da dupla Dominguinhos (1941 – 2013) e Anastácia, compositores de Eu só quero um xodó, xote que, gravado por Gil para single editado em 1973, parece ter norteado os caminhos que conduziram Gil ao interior de Refazenda.
Cantor, compositor e sanfoneiro pernambucano, o imortal Dominguinhos é nome fundamental na arquitetura de Refazenda, não somente pelo toque do acordeom, mas também por ser parceiro de Gil em uma das músicas mais famosas do repertório, Lamento sertanejo, letrada por Gil a partir de tema instrumental de Dominguinhos gravado pelo autor dois anos antes no álbum Tudo azul (1973).
Lamento sertanejo é, ao lado de Tenho sede e da faixa-título Refazenda, as músicas mais conhecidas do álbum. Os sucessos, em bom português. Mas todo o repertório se impõe no conjunto monumental da obra de Gilberto Gil.
A singularidade é que, das dez músicas autorais, uma não foi composta para Refazenda, mas para o álbum que Gil gravou em estúdio, em 1973, e que abortou no meio do processo de criação deste disco que somente chegaria ao mundo em 1998 na caixa Ensaio geral (1998), produzida pelo pesquisador musical Marcelo Fróes. Trata-se de Essa é para tocar no rádio, canção apresentada em Refazenda com take extraído da gravação do interrompido disco de 1973, mas com a adição do acordeom de Dominguinhos.
Dentre as canções do álbum Refazenda, Pai e mãe merece menção honrosa pela letra em que Gil quebra com sutileza as fronteiras sociais que separam o masculino do feminino, embaralhando os gêneros em época de repressão sexual.
Já Jeca Total é música inspirada na figura do poeta Jorge Salomão (1946 – 2020), mencionado na letra em que Gil também cita a novela Gabriela (1975), grande sucesso da TV Globo naquele ano. Em Jeca Total, Gil se vale da figura ruralista do Jeca Tatu para cruzar a porteira da (re)fazenda rumo a trilhos urbanos.
Se Retiros espirituais reverbera certa ideologia hippie que também mobilizava a alma introspectiva do artista, Ê povo ê é momento exteriorizado do disco em que Gil embute paradoxal melancolia nos versos de música que insinua celebração.
Por fim, há o rock O rouxinol, parceria de Gil com Jorge Mautner, música que, no tom mais comedido de Refazenda, parece ter abafada a vocação roqueira do álbum anterior de Gil, Expresso 2222.
Enfim, por tocar em questões universais com som moldado sem modismos musicais, o álbum Refazenda permanece atemporal, com frescor, tão viçoso quanto em 1975.