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Falta de itens essenciais e saúde precária: defensores denunciam insalubridade em presídios de Hortolândia e Campinas


Inspeções realizadas neste ano encontraram superlotação, falta de itens de higiene e equipe de saúde insuficiente. Denúncias foram encaminhadas para a corregedoria dos presídios. Defensoria Pública denuncia insalubridade em presídios de Hortolândia e Campinas
Uma inspeção realizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo na Penitenciária III de Hortolândia (SP) indica que as pessoas presas na unidade vivem em meio a um cenário de lotação e violações de direitos básicos.
No presídio, que tem capacidade superestimada para 700 custodiados, 1,2 mil homens encaram a falta de itens essenciais para a dignidade humana, como papel higiênico e outros produtos pessoais, poucos uniformes novos e a dificuldade de acesso à saúde.
O documento também denuncia a falta de oportunidade de trabalho dentro da penitenciária, além da aplicação de sanções coletivas. Os apontamentos fazem parte de um protocolo de providências que foi encaminhado à corregedoria dos presídios estaduais com o pedido de melhorias imediatas.
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A inspeção relatada ocorreu no dia 17 de maio deste ano. Uma semana antes, o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Campinas também foi visitado pelos defensores, que constataram irregularidades estruturais e condições insalubres.
Para entender mais detalhes sobre o trabalho, o g1 analisou o documento e conversou com a defensora pública Camila Tourinho, coordenadora auxiliar do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria, e com especialistas em direito sobre os principais pontos.
Questionada sobre os apontamentos, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) afirmou, por meio de nota, que “as unidades prisionais citadas pela reportagem operam dentro dos padrões de segurança e disciplina” (confira a posição completa abaixo).
“As pessoas, quando estão presas, elas perdem o seu direito de ir e vir, o seu direito de liberdade, mas os outros direitos precisam ser garantidos. Ela não perde e ela não pode perder a sua dignidade, a sua condição de pessoa humana, o seu direito à saúde”, declara a professora de direito Fernanda Ifanger, da PUC-Campinas.
Nesta reportagem você vai conferir:
Pouca distribuição de kits de higiene e uniformes
Equipe de saúde insuficiente
Falta de oportunidades de trabalho e sanções coletivas
Detalhes da inspeção em Campinas
O que diz a Secretaria da Administração Penitenciária
Como a precarização afeta a sociedade como um todo
Entenda o trabalho da Defensoria Pública
Penitenciária III de Hortolândia – presos ocupando cela do setor de inclusão
Defensoria Pública do Estado de São Paulo/Divulgação
Um rolo de papel higiênico para três meses
Para os defensores, a distribuição de itens de higiene pessoal na unidade, como papel higiênico e sabonetes, é insuficiente. Documentos apresentados pela diretoria do presídio à pedido da Defensoria Pública mostram que três meses antes da visita foram entregues para os quase 1,2 mil ocupantes:
1352 sabonetes, 1352 barbeadores, 231 escovas de dente, 1352 pastas de dente e 1352 rolos de papel higiênico.
Isso significa que, se contassem exclusivamente com o que é disponibilizado pela unidade, cada interno teria pouco mais de um rolo de papel para 90 dias. Com a pouca quantidade, acabam dependendo do jumbo – kit de produtos de higiene e alimentos que recebem dos familiares em visitas ou pelo Correios.
“Essa é uma reclamação bastante comum e geral das unidades. Não há um fornecimento periódico suficiente para garantir que as pessoas presas possam manter a higiene de uma forma adequada. Então, fornecimento de sabonete, papel higiênico, roupas também, escova de dente, pasta de dente, são itens que acabam faltando ali”, detalha a defensora.
No protocolo, o órgão faz referência à Resolução 4/2017 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), pontuando que itens como sabonete e desodorante devem ser repostos semanalmente, enquanto rolos de papel higiênico (apesar do plural, a quantidade não é especificada) devem ser entregues de forma quinzenal.
Penitenciária III de Hortolândia – Papel de higiênico, sabonete, pasta de dentes, barbeador e escova de dentes que seria entregues no momento da inclusão
Defensoria Pública do Estado de São Paulo/Divulgação
Apenas a roupa do corpo
Ainda com relação à distribuição de materiais, outro déficit está relacionado às vestimentas. Segundo o documento, no momento da visita, a diretoria teria alegado que distribui peças de roupa quando necessário, mas os custodiados não concordaram e disseram ter apenas o uniforme que vestiam.
Em ofício, a direção prisional detalhou que entregou nos três meses anteriores à inspeção 109 blusas, 170 bermudas, 193 camisetas, 186 calças, 231 cuecas, 174 meias, 224 toalhas de banho e 224 toalhas de rosto. Ainda segundo os presos, faltam cobertores e os colchões são precários.
A defensoria sinaliza que a distribuição pouco recorrente de uniforme pouco vai contra as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Preso, que diz que o vestuário deve ser garantido e que as vestes não devem ser degradantes ou humilhantes.
Penitenciária III de Hortolândia – custodiado veste bermuda em condição precária
Defensoria Pública do Estado de São Paulo/Divulgação
Poucos profissionais de saúde
Os custodiados ainda reclamaram da demora para conseguir atendimento médico e odontológico. Não havia profissionais afastados à época da vistoria e a equipe de saúde era formada por cinco pessoas, incluindo um médico (20 horas semanais), um enfermeiro (30 horas semanais), um dentista (20 horas semanais) e dois profissionais de assistência à saúde/psicólogos (30 horas semanais).
O número está abaixo do que é previsto pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnais), citado pela defensoria, que recomenda que estabelecimentos com até 1,2 mil pessoas tenham serviço de saúde que funcione ao menos 30 horas semanais com uma equipe composta por 11 servidores, incluindo:
assistente social, cirurgião-dentista, enfermeiro, médico, psicólogo, técnico ou auxiliar de enfermagem, técnico ou auxiliar de higiene bucal (um de cada) e outro especialista, que pode ser nutricionista, fisioterapeuta ou farmacêutico, além de uma equipe adicional composta por um psiquiatra ou médico com experiência em saúde mental e dois profissionais de outras áreas da saúde.
Além de o acesso à saúde ser um direito de toda a população, incluindo pessoas presas, e sua oferta ser um dever do Estado, a Defensoria Pública lembra que a insalubridade do cárcere contribui para o adoecimento, o que vai contra as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, com a falta de profissionais de saúde e as condições da unidade, pede ação imediata do Poder Judiciário.
Penitenciária III de Hortolândia – interior de uma das celas do setor de enfermaria
Defensoria Pública do Estado de São Paulo/Divulgação
Falta de oportunidade de trabalho e punições
O documento aponta ainda que a população da unidade reclama do racionamento de água, que não fica disponível durante todo o dia – o que os obriga a armazenar em baldes dentro das celas –, e da falta de banho de sol entre parte da população carcerária– o que deveria ocorrer duas horas por dia.
“As pessoas presas relatam que ficam várias horas por dia com a água cortada, e isso é bastante complicado, especialmente em ambientes insalubres, como as unidades prisionais superlotadas. Por vezes também o calor faz com que a interrupção do fornecimento de água torne as condições de encarceramento ainda mais cruéis”, comenta Camila.
Penitenciária III de Hortolândia – cela do setor de segurança pessoal
Defensoria Pública do Estado de São Paulo/Divulgação
Há ainda um déficit na alimentação diária, que é preparada pelos próprios detentos e avaliada por eles como regular. O problema está associado à baixa frequência e o longo jejum de 14 horas entre a primeira e a última: são servidos café da manhã, almoço e janta, mas o CNPCP prevê cinco refeições.
Relataram ainda sofrer sanções coletivas, nas quais todos são punidos por condutas individuais, e afirmam terem sido atacados com bombas e spray de pimenta dentro das celas durante uma ação do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), grupamento tático da Polícia Penal que atua em presídios.
“[O GIR] é um agrupamento de agentes penitenciários que serve para conter situações de emergência excepcionais nas unidades prisionais. Mas, na prática, o que a gente vê é que eles são acionados, muitas vezes, por qualquer ocorrência da unidade. Sempre as intervenções do GIR são narradas como bastante agressivas, violentas”.
Outra queixa é com relação à falta de oportunidade de trabalho. No momento da visita dos defensores, a penitenciária só tinha vaga para 16% dos internos. A Defensoria Pública também pediu a instituição da remição da pena por leitura.
Inspeção em Campinas
O Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Campinas (SP) também passou por inspeção no dia 10 de maio deste ano. A unidade, que tem capacidade para 2.058 reeducandos, mantinha à época 2.382, segundo informações da direção à Defensoria Pública.
De acordo com o relatório produzido pelos defensores, a conversa com os custodiados não foi proveitosa por conta da presença dos funcionários. Apesar disso, houve reclamações sobre a estrutura e as condições da unidade.
No dia da visita, fazia muito calor dentro do pavilhão e as pessoas presas estavam sem camisa e em situação precária, segundo os defensores. Relatos apontaram que a situação era ainda pior no pavilhão destinado aos “mais perigosos” e que concentrava mais reclamações.
De modo geral, a depender do pavilhão em que estavam instaladas, as pessoas presas se queixaram:
do tratamento recebido pelos agentes, das instalações e da presença de insetos e outras pragas;
da falta de camas ou colchões em boas condições;
do racionamento da água e da necessidade de armazená-la de forma improvisada;
da falta de dentista;
da pouca distribuição de kits de higiene;
da burocracia para receber visitantes, mesmo com certidão de casamento ou filhos.
🔎 Entenda: as informações relatadas nesta reportagem sobre o CPP de Campinas foram extraídas do relatório de inspeção, enquanto as de Hortolândia foram coletadas do protocolo de providências. O relatório é um documento elaborado logo após a visita com as impressões dos defensores, enquanto o protocolo reúne, além desses achados, os pedidos de melhorias e suas justificativas.
Durante a apuração do g1, a Defensoria Pública ainda não havia elaborado o pedido de providências porque, segundo o órgão, a direção da unidade demorou para responder aos ofícios que pediam mais informações. No entanto, o documento ainda deve ser elaborado e será encaminhado à corregedoria com o pedido de que sejam sanados problemas citados acima.
A precarização dos presídios afeta a sociedade
A professora de direito Fernanda Ifanger, da PUC Campinas, pontua que a situação precária dos presídios brasileiros – refletida nas unidades citadas nesta reportagem – deve ser vista como algo grave. Ela lembra que, assim como qualquer cidadão, a pessoa presa também deve ter sua dignidade respeitada.
“A gente precisa pensar que os presos são cidadãos. A forma como o Estado trata seus presos mostra como ele está tratando uma parcela da sua população. É muito importante a gente pensar sobre isso. A pessoa, por ser presa, não perde a sua condição de cidadania. Então, a gente entende, por meio do sistema carcerário, como é que o nosso país trata as pessoas vulneráveis”.
“Essas pessoas que são submetidas à prisão em condições absolutamente degradantes e, depois de algum tempo, retornarão à sociedade. E aí, como elas retornarão? Se sobre você recai uma violência, além daquela que era necessária para te punir, como é que será que você vai responder a ela? Então, a gente também precisa pensar nisso”.
O professor Ferdinando Ramos Ferreira, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp, endossa a análise e lamenta que o Brasil ainda seja permeado pela cultura do punitivismo. Para ele, a sociedade perde com a ideia de que o preso deve ser privado da dignidade, pois é justamente a falta de suporte neste momento que o leva à reincidência.
Dessa forma, além da oferta de um serviço digno e que respeite os direitos humanos, como a garantia de alimentação, condições salubres e outros elementos essenciais, ele defende a humanização do sistema prisional, com foco na ressocialização. O especialista destaca que é necessário entender o que leva à criminalidade e sanar o problema pela raiz.
“É um modelo de risco, responsabilidade e resposta, com foco em entender como a vulnerabilidade impacta na reincidência da pessoa privada, tratando as necessidades dos infratores, como saúde mental, comportamento aditivo, possibilidade de escolaridade, vínculo familiar e outros elementos. esses dois eixos possibilitam uma intervenção que reduz o comportamento violento e criminoso”.
O que diz a Secretaria da Administração Penitenciária?
Sobre a distribuição de kits de higiene e uniformes, afirma que são realizadas regularmente nas duas e que, somado a isso, “os familiares também podem enviar itens adicionais, caso queiram e o preso pode adquirir produtos com o dinheiro obtido pelo trabalho formal, que fica em uma conta até ele ganhar liberdade”.
Já com relação à superlotação, destaca que estão previstas as inaugurações de dois novos presídios n as cidades de Riversul e Santa Cruz da Conceição, que terão 1.646 vagas. “O Governo de São Paulo também apoia a adoção de penas alternativas pelo Poder Judiciário, além da realização de mutirões dando maior agilidade aos processos”.
A SAP também falou sobre as atividades de trabalho e educação e disse que no CPP de Campinas, só neste ano, foram disponibilizadas 15.699 vagas remuneradas e oportunidades educacionais, incluindo cursos e capacitações do Sebrae. Na Penitenciária III de Hortolândia, há atividades focadas nas áreas de educação, reintegração social e estudo, além de estímulo à leitura.
Quanto aos atendimentos de saúde, pontuou que no CPP de Campinas há uma equipe, além de atendimentos por telemedicina. “Foram realizados 98.366 atendimentos de saúde em 2024, incluindo consultas médicas, odontológicas, vacinação e campanhas preventivas”. Em Hortolândia, “nos últimos cinco anos, foram realizados 1.049 atendimentos voltados à saúde”.
A pasta completou ainda que “os presos somente são passíveis de punição quando se comprova sua participação efetiva, de forma direta ou indireta, no ato de indisciplina praticado pelo visitante. Todas as punições são precedidas de procedimento disciplinar (com direito à defesa) e, no caso das faltas graves, são remetidas ao juízo”.
Entenda o trabalho da Defensoria Pública
A Defensoria Pública possui núcleos especializados que atuam de forma estratégica dentro de cada um de seus temas. Um deles é o Núcleo de Situação Carcerária (Nesc), que tem como principal atividade inspecionar unidades prisionais e dar visibilidade às eventuais violações, pedindo por providências que ajudem a melhorar o cenário crítico.
O trabalho funciona da seguinte forma:
o Nesc é composto por três coordenadores e 30 colaboradores que ficam afastados de suas atividades administrativas, uma vez por mês, para fazer as inspeções;
dessa forma, mensalmente, são realizadas inspeções nas unidades prisionais de todo o estado;
durante as visitas, os defensores conversam com a direção e, principalmente, com as pessoas presas para elaborar um relatório que é divulgado no site do órgão;
os defensores sempre tentam conversar com os internos sem a presença de agentes prisionais, na expectativas de que eles não se sintam intimidados para denunciar violações;
eles também fazem anotações e fotografam as violações que encontram nesses locais.
“Essa política de inspeção deriva justamente da necessidade que a gente observou 10 anos atrás, de que a gente pudesse ver o que acontece dentro das unidades prisionais, fotografar, contar com os relatos das pessoas presas, da direção da unidade, dos agentes penitenciários e também pela nossa observação direta”.
“A importância está justamente, em que a gente possa fazer um retrato, publicizar o que acontece dentro das unidades prisionais e tomar as providências visando diminuir um pouco essas violações. E aí eu digo isso, diminuir um pouco, porque não existe cárcere sem violação de direitos”.
Após as inspeções, o trabalho continua:
no dia da inspeção, os defensores protocolam ofícios pedindo que o presídio disponibilize mais informações, como números de presos, servidores, entre outras coisas;
com esses dados em mãos, instauram um pedido de providências junto à corregedoria dos presídios;
em alguns casos, eles também podem fazer ações civis públicas ou até propor projetos de lei para diminuir as violações de direitos no cárcere.
As inspeções surtem efeito?
A coordenadora do Nesc detalha ainda que, a partir da denúncia, os juízes corregedores pedem explicações para as unidades. As vezes, os pedidos acabam, sim, resultando em mudanças positivas. No entanto, ela detalha que alguns dos problemas são sistêmicos e demandam persistência.
“O que a gente percebe é que nos pedidos de providências, muitas vezes, os juízes corregedores não realizam determinações muito incisivas. Isso acaba configurando uma certa omissão do Poder Judiciário com relação às demandas que nós encaminhamos”.
“A gente encaminha o juiz corregedor. Quando a gente não consegue algo em numa primeira análise, a gente recorre à Corregedoria do Tribunal de Justiça e vamos tentando, por essa via, reverter a situação. Vamos tentar fazer alguma articulação por outras vias para minimizar essas violações”, conclui.
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