Os réus estão sendo chamados de ‘senhor todo mundo’ porque representam, em linhas gerais, um microcosmo da sociedade francesa. Juntos, os réus acusados de estuprar Gisèle Pelicot podem pegar mais de 600 anos de prisão.
Reuters
Eles são jovens, idosos, parrudos, magros, negros e brancos. Entre eles, estão bombeiros, motoristas de caminhão, soldados, seguranças, um jornalista e um DJ.
Estes são os 50 homens condenados nesta quinta-feira (19) por estuprar Gisèle Pelicot a mando do marido dela, Dominique Pelicot, de 72 anos, que a drogou durante uma década com comprimidos para dormir.
‘Que a vergonha mude de lado’: Gisèle Pelicot, de sobrevivente de estupros em série a ícone feminista
Gisèle Pelicot deixa tribunal após condenação de abusadores
Por representarem, em linhas gerais, um microcosmo da sociedade francesa, estão sendo chamados de Monsieur-Tout-Le-Monde (algo como “Sr. Todo Mundo”).
Durante o julgamento, que começou em setembro, alguns deles agiram de forma desafiadora, mas a maioria olhava para baixo enquanto respondia às perguntas dos juízes, levantando o olhar de vez em quando para mirar os advogados em busca de validação.
Réus sendo orientados por advogada durante audiência
Christophe SIMON / AFP
‘Meu corpo a estuprou, mas meu cérebro não’
Os promotores basearam seus pedidos de pena ao tribunal em fatores agravantes. Quantas vezes os réus foram à casa dos Pelicot, se eles tocaram sexualmente em Gisèle Pelicot e se a penetraram.
Joseph Cocco, de 69 anos, técnico esportivo aposentado e avô dedicado, foi condenado por agressão sexual agravada, com três anos de prisão.
No outro extremo, está Romain Vandevelde, de 63 anos, condenado por estupro qualificado. Ele sabia que havia sido diagnosticado com HIV, vírus causador da Aids — e, ainda assim, é acusado de estuprar Gisèle Pelicot em seis ocasiões distintas sem usar preservativo.
Os promotores conseguiram entrar neste nível de detalhe, o que não é comum em um julgamento de estupro, porque há uma quantidade impressionante de evidências contra os réus, já que as supostas agressões foram filmadas durante quase uma década por Dominique Pelicot.
Ele admitiu todas as acusações contra ele, e disse ao tribunal que todos os 50 corréus também são culpados.
Todas as evidências em vídeo significam que nenhum dos homens foi capaz de negar que esteve na casa dos Pelicot. Mas a maioria contesta veementemente as acusações de estupro com agravantes, que acarretariam penas maiores.
A legislação da França define estupro como qualquer ato sexual cometido por “violência, coerção, ameaça ou surpresa”; ela não faz referência a qualquer necessidade de consentimento.
Portanto, embora muitos reconheçam que o que fizeram foi tecnicamente estupro, eles também argumentam que não podem ser culpados por isso porque não sabiam que Gisèle Pelicot não estava em condições de dar seu consentimento.
“Não pode haver crime sem a intenção de cometê-lo”, afirmou um advogado de defesa.
“Meu corpo a estuprou, mas meu cérebro não”, insistiu Christian Lescole, que é bombeiro voluntário, em um exemplo do raciocínio intrincado apresentado por alguns dos réus. Ele foi condenado a nove anos por estupro qualificado.
O único homem entre os 50 que não é acusado de estuprar Gisèle Pelicot é Jean-Pierre Maréchal, de 63 anos, que foi apelidado de “discípulo” de Dominique Pelicot.
Após aprender como drogar sua própria esposa para abusar dela, ele fez isso por cinco anos — e admite.
Ele atribui seus crimes ao fato de ter conhecido Dominique Pelicot, que, segundo ele, era “reconfortante, como um primo”.
Maréchal foi condenado a 12 anos por tentativa de estupro e estupro qualificado de sua esposa.
‘Manipulados e enganados por Pelicot’
Ahmed Tbarik, um encanador de 54 anos, casado com a namoradinha de infância há 30 anos, disse que se quisesse estuprar alguém, não teria escolhido uma mulher de 60 anos. Ele foi condenado a oito anos por estupro qualificado.
Redouane Azougagh, um homem desempregado de 40 anos, argumentou que, se ele tivesse a intenção de estuprar Gisèle, não teria permitido que o marido dela fizesse vídeos. Foi condenado por estupro qualificado.
Alguns também alegam que foram intimidados por Dominique Pelicot, que, segundo um advogado disse à BBC, tinha uma “personalidade abominável”.
Outros argumentam que foram oferecidas bebidas batizadas com drogas a eles — e, portanto, não se lembram do ocorrido, embora Dominique Pelicot negue ter feito isso.
A maioria, no entanto, afirma ter sido manipulada ou enganada por Dominique Pelicot, que os teria convencido de que estavam participando de um jogo sexual com o consentimento do casal.
“Eles foram colocados em uma situação em que foram enganados”, declarou Christophe Bruschi, advogado de Joseph Cocco, à BBC.
“Eles foram ludibriados.”
Mas Dominique Pelicot sempre disse que deixou bem claro para os homens que sua esposa não estava ciente da trama.
Ele contou que deu instruções a eles para evitar acordá-la ou deixar vestígios de que haviam estado ali — como aquecer as mãos antes de tocar na esposa ou não cheirar a perfume ou cigarro.
“Todos eles sabiam, não podem negar isso.”
Os réus estão sendo chamados de Monsieur-Tout-Le-Monde, porque representam, em linhas gerais, um microcosmo da sociedade francesa
GETTY IMAGES
Famílias em busca de respostas
Desde setembro, os 50 homens têm comparecido, um após o outro, perante o tribunal em Avignon.
Normalmente, em casos de estupro, as investigações relacionadas ao caráter podem levar vários dias.
Neste julgamento, devido ao grande número de réus envolvidos, elas foram condensadas em algumas horas, no máximo. Suas vidas foram dissecadas em velocidade recorde, muitas vezes transformando a sessão do tribunal em uma série de histórias de abuso e trauma.
Simoné Mekenese, um trabalhador da construção civil de 43 anos, disse que foi estuprado quando tinha 11 anos por um amigo da família que o empregou para cuidar do gado no território ultramarino francês da Nova Caledônia. Ele foi condenado a nove anos por estupro qualificado.
Jean-Luc LA, de 46 anos, pai de quatro filhos, contou ao tribunal como ele e sua família deixaram o Vietnã em um bote quando ele era criança e viveram em um acampamento de refugiados na Tailândia por vários anos antes de se mudarem para a França. Também foi condenado por estupro qualificado.
Fabien Sotton, um homem de 39 anos com várias condenações anteriores, incluindo tráfico de drogas e agressão sexual de um menor, disse que foi abusado e espancado por pais adotivos desde muito jovem.
Assim como vários outros réus, ele afirmou que só percebeu que suas lembranças nebulosas e dolorosas da infância, na verdade, constituíam estupro, durante as consultas com psiquiatras ordenadas pelo tribunal. Sotton foi condenado a 11 anos por estupro qualificado.
Muitas esposas, companheiras e parentes dos réus foram chamados para depor sobre seu caráter. As famílias também procuravam respostas enquanto tentavam entender como aqueles homens que faziam parte da sua vida poderiam ter acabado “envolvidos neste tipo de situação”, como disse uma mulher.
“Fiquei chocado, isso não se parece em nada com ele. Ele era a alegria da minha vida”, afirmou o pai idoso de Christian Lescole.
“Deve ter acontecido alguma coisa, ele deve ter ficado deprimido”, refletiu o pai em voz alta.
‘Sempre estarei ao lado dele’
Corinne, a ex-mulher de Thierry Parisis, de 54 anos, um ex-construtor, afirmou que ele sempre foi “gentil” e “respeitoso” com ela e com os filhos — e pareceu deixar a porta aberta para uma reconciliação. Ele foi condenado a oito anos por estupro qualificado.
“Quando me contaram do que ele era acusado, eu disse: ‘Jamais, isso é impossível… Não entendo o que ele está fazendo aqui'”. Ela acreditava que foi a morte do filho de 18 anos que levou o ex-marido a entrar em depressão profunda, começar a beber e, por fim, entrar em contato com Dominique Pelicot.
“Sempre estarei ao lado dele, aconteça o que acontecer”, declarou a ex-namorada de Joan Kawai, nascida na Guiana. Aos 27 anos, o ex-soldado do Exército francês é o mais jovem da lista. Ele foi condenado a dez anos por estupro qualificado.
Ele negou ter estuprado Gisèle Pelicot em duas ocasiões. Embora soubesse que ela estaria inconsciente, ele disse que não tinha percebido que ela não havia dado seu consentimento.
Em meio a lágrimas, uma mulher chamada Samira contou que passou os últimos três anos e meio “procurando respostas” sobre o motivo de Jerome Vilela ter ido seis vezes à casa dos Pelicot.
“Tínhamos relação sexual diariamente, não entendo por que ele teve que procurar em outro lugar”, afirmou, soluçando.
Ela ainda está em um relacionamento com Jerome Vilela, que trabalhava em uma quitanda na época em que foi preso.
Ele é um dos poucos que admitiram ter estuprado Gisèle, dizendo que gostava da ideia de ter “carta branca” sobre ela — mas colocou a culpa na sua “sexualidade incontrolável”. Vilela foi condenado a 13 anos por estupro qualificado.
Cartaz pregado em Marselha durante protesto em apoio a Gisèle Pelicot diz “estupro = estupro”, contra linha de defesa de acusados
GETTY IMAGES
Gisèle Pelicot: Eles me estupraram em plena consciência
Muitas ex-parceiras e atuais companheiras dos réus foram submetidas a exames para verificar se também haviam sido drogadas como Gisèle. Uma mulher disse que “sempre teria uma dúvida terrível” de que o “homem respeitoso, atencioso e doce” que ela conhecia também havia abusado dela sem seu conhecimento.
Desde o início do julgamento, muito tem se falado sobre a necessidade de encontrar um elemento que ligue todos esses homens.
Um denominador comum — além do fato de que todos os homens foram para a casa dos Pelicot por vontade própria — “não foi encontrado”, disseram os advogados de Gisèle.
Mas há um fator que todos os réus têm indiscutivelmente em comum: todos eles fizeram a escolha consciente de não procurar a polícia.
Jacques C, um bombeiro de 73 anos, disse que havia pensado nisso, mas “depois a vida seguiu”, enquanto Patrice N, um eletricista de 55 anos, afirmou que “não queria perder o dia inteiro na delegacia”.
Nos primeiros dias do julgamento, perguntaram a Gisèle Pelicot se ela achava legítimo pensar que os homens haviam sido manipulados por seu marido.
Ela balançou a cabeça: “Eles não me estupraram com uma arma apontada para suas cabeças. Eles me estupraram em plena consciência”.
Quase como uma reflexão, ela perguntou: “Por que eles não procuraram a polícia? Até mesmo um telefonema anônimo poderia ter salvado minha vida”.
“Mas ninguém fez isso”, ela acrescentou, após uma pausa. “Nenhum deles.”
Quem são os homens condenados e quais foram as suas sentenças
Dominique Pelicot: Culpado de estupro qualificado de sua ex-esposa, Gisèle. Também culpado da tentativa de estupro da esposa de um dos co-acusados, Jean Pierre Marechal, Cillia, e de tirar imagens indecentes de sua filha, Caroline, e de suas noras, Aurore e Celine. Condenado a 20 anos de prisão.
Jean-Pierre Marechal: Culpado de tentativa de estupro e estupro qualificado de sua esposa, além de drogá-la. Condenado a 12 anos.
Charly Arbo: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 13 anos.
Florian Rocca: Culpado de estupro qualificado.
Cyrille Delville: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Christian Lescole: Culpado de estupro qualificado. Ele foi absolvido da acusação de ter imagens de abuso infantil. Condenado a nove anos.
Lionel Rodriguez: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Nicolas Francois: Culpado de estupro qualificado e de ter imagens de abuso infantil. Condenado a oito anos e proibido de trabalhar com crianças.
Jacques Cubeau: Culpado de estupro qualificado. Condenado a cinco anos.
Patrice Nicolle: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Thierry Parisis: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Simoné Mekenese: Culpado de estupro qualificado. Condenado a nove anos.
Nizar Hamida: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 10 anos.
Boris Moulin: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Dominique Davies: Culpado de estupro qualificado.
Jerome Vilela: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 13 anos.
Didier Sambuchi: Culpado de estupro qualificado. Condenado a cinco anos.
Cyprien Culieras: Culpado de estupro qualificado.
Mathieu Dartus: Culpado de estupro qualificado.
Quentin Hennebert: Culpado de estupro qualificado. Condenado a sete anos.
Cyril Beaubis: Culpado de estupro qualificado.
Philippe Leleu: Culpado de estupro qualificado. Condenado a cinco anos, dos quais dois estão suspensos.
Jean-Luc LA: Culpado de estupro qualificado.
Fabien Sotton: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 11 anos.
Karim Sebaoui: Culpado de estupro qualificado e de ter imagens de abuso infantil. Condenado a 10 anos.
Redouane Azougagh: Culpado de estupro qualificado.
Joan Kawai: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 10 anos.
Jean-Marc LeLoup: Culpado de estupro qualificado. Condenado a seis anos.
Andy Rodriguez: Culpado de tentativa de estupro e fatores agravantes. Condenado a seis anos.
Vincent Coullet: Culpado de estupro qualificado. Condenado a 10 anos.
Adrien Longeron: Culpado de estupro qualificado e imagens de abuso infantil. Condenado a seis anos.
Hughes Malago: Culpado de tentativa de estupro e dois fatores agravantes. Condenado a cinco anos.
Ahmed Tbarik: culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Paul-Koikoi Grovogui: Culpado de estupro qualificado.
Omar Douiri: Culpado de estupro qualificado.
Husamettin Dogan: Culpado de estupro qualificado. Condenado a nove anos.
Romain Vandevelde: Culpado de estupro qualificado.
Joseph Cocco: Culpado de agressão sexual qualificada. Condenado a três anos.
Hassan Ouamou: Culpado de estupro qualificado.
Redouane El Farihi: Culpado de estupro agravado. Condenado a oito anos.
Saifeddine Ghabi: Absolvido de estupro e tentativa de estupro. Culpado de agressão sexual.
Jean Tirano: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Mohamed Rafaa: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Ludovick Blemeur: Culpado de estupro qualificado.
Patrick Aron: Culpado de estupro qualificado. Condenado a seis anos, mas está em liberdade hoje porque tem problemas médicos e precisará ser colocado em uma prisão especial, de acordo com o juiz.
Abdelali Dallal: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos, mas hoje está em liberdade devido a problemas médicos e precisará ser colocado em uma prisão especial, de acordo com o juiz.
Grégory Serviol: Culpado de estupro qualificado. Condenado a oito anos.
Cedric Grassot: Culpado de estupro qualificado.
Cendric Venzin: Culpado de estupro qualificado. Condenado a nove anos.