Christophe SIMON
“Tão banal quanto fora do comum”, o julgamento dos estupradores de Gisèle Pelicot mobilizou os jornalistas do escritório da AFP em Marselha por vários meses, fazendo-os se questionar tanto sobre sua cobertura dos horrores narrados, quanto sobre a relação entre homens e mulheres.
Desde 2 de setembro, este caso, que teve um impacto excepcional no mundo, lançou luz sobre a figura de Gisèle Pelicot e gerou um debate crucial sobre o crime de estupro.
“Gisèle Pelicot chega e sabemos que ela se depara, assim como nós, com estes rostos pela primeira vez, os de todos os homens que a estupraram”, lembra Viken Kantarci, jornalista da AFPTV que cobriu o julgamento com seu colega do mesmo serviço, Fabien Novial.
“Rapidamente, nos demos conta de como seria este julgamento: algo que era bastante banal quanto ao perfil das pessoas que tínhamos diante de nós, e ao mesmo tempo fora do comum por seu número e a magnitude dos fatos”.
Entre os 51 homens julgados, a maioria por estupros agravados contra Gisèle Pelicot, destaca-se seu ex-marido, Dominique Pelicot, que a drogou durante uma década para estuprá-la e entregá-la a dezenas de homens que contactava pela internet. Os acusados, com idades entre 27 e 74 anos, são de ocupações e classes diferentes: desempregados, caminhoneiros, jornalistas, bombeiros, engenheiros, eletricistas…
Embora se esperasse uma sessão a portas fechadas, no primeiro dia Gisèle Pelicot rejeitou esta opção e pediu um julgamento público para “mudar a forma como as pessoas veem o estupro”.
– De anônima a ícone –
Graças a esta decisão, ela “permitiu que este julgamento existisse e, com sorte, que deixe marcas na história”, disse David Courbet, jornalista do escritório de Marselha da AFP e um dos repórteres que cobriram o julgamento desde o começo.
Gisèle Pelicot falou diante das câmeras três dias depois da abertura, alertando que lutaria “até o fim”. A AFP, que até aquele momento havia preservado o anonimato da vítima para proteger sua privacidade, e a de seus filhos e netos, decidiu publicar seu nome pela primeira vez, em um acordo prévio com os advogados da família.
“De vítima anônima, ela se tornou um ícone, portadora de uma mensagem política, universal”, diz o jornalista Courbet.
Desde então, seu nome e seu rosto – com cabelos curtos, franja e óculos de sol redondos -, apareceu em grafites, cartazes e diferentes mensagens de apoio nas paredes de Avignon, Paris e Nova York.
Avignon, a pequena cidade do sudeste da França, começou a viver no ritmo do julgamento. A mobilização feminista se intensificou, os restaurantes do entorno lotaram, mas com uma diferença bem conhecida pelos jornalistas: os locais frequentados pelos acusados e outros que recebiam a parte acusadora.
“De algumas poucas câmeras no começo, vimos a chegada de câmeras francesas, mas também estrangeiras, da imprensa internacional, britânica, americana e espanhola”, lembra Kantarci.
No saguão da sala do tribunal formou-se um balé de câmeras, microfones, idas e vindas.
A partir das 05h45 da manhã, pessoas anônimas se aglomeravam em frente à corte – que abre as portas por volta das 08h15 – para poder entrar na sala de transmissão, com certa de 30 assentos. Muitos aguardaram em vão.
– O jardim de um hotel –
À margem dos debates, que não puderam ser assistidos, cinegrafistas e fotógrafos imortalizaram os atos que ocorriam em paralelo: as canções, os comícios, e deram a palavra aos apoiadores da família Pelicot, aos sociólogos, aos moradores de Mazan, onde ocorreram os fatos.
Dentro da sala do tribunal, Benoît Peyrucq fazia ilustrações para a imprensa, inclusive do réu, Dominique Pelicot, que deram volta ao mundo.
Entre as imagens para a imortalidade, destacou-se a de Gisèle Pelicot “com a cabeça erguida”, atravessando a sala em meio a aplausos – gente que formou uma guarda de honra e que levava buquês de flores.
O inverso do que ocorreu com os acusados que compareceram em liberdade e que, à medida que passaram os dias do julgamento, apareciam com bonés, máscaras e capuzes para preservar suas identidades, alguns deles “mais agressivos com os jornalistas”, compara Kantarci.
“Demos muito espaço a Gisèle Pelicot e sua família porque podemos imaginar o que tiveram que aguentar”, conta, por sua vez, Christophe Simon, fotógrafo da AFP há quase 40 anos. Houve nesta cobertura um respeito e uma delicadeza que não foram vistos com outras histórias midiáticas que cobriu.
Diariamente, o fotojornalista criou um vínculo com a vítima e seus advogados. “Um dia caí na frente dela e ela mesma me levantou”, lembra.
Em 23 de outubro, os advogados de Gisèle Pelicot acessam seu pedido de participar de uma sessão de fotos com ela e se encontram no meio da tarde no jardim do seu hotel.
“Foi um momento ameno”, conta Simon. Ele lhe conta que cobriu guerras, zonas de perigo e que tem dificuldades de sair da “escuridão”. Também lhe diz que diante do que ela está passando, a considera “impressionante”.
“Parecia surpresa e interessada”, diz o fotógrafo, cujos retratos de Gisèle Pelicot posando em um jardim ensolarado, com os olhos fixos na lente, foram reproduzidos pela imprensa mundial.
– Fatos sórdidos –
A crueza marcou os quatro meses de julgamento. “A repetição do estupro de uma mulher é algo que obviamente marca muito, e também nos damos conta de até que ponto este caso rompeu uma família”, explica Isabelle Wesselingh, então diretora do escritório de Marselha, que coordenou toda a cobertura com seu adjunto, Olivier Lucazeau.
“O que pode parecer complicado é que é preciso levar em conta que um julgamento requer um debate contraditório, dar uma palavra justa à defesa, questionar as coisas, o que não significa amenizar o sofrimento”, explica.
Em linha com as diretrizes editoriais da AFP sobre a cobertura da violência sexual, a equipe se ateve à terminologia que deve ser adotada para diferenciar “o voyeurismo e a cobertura de fatos às vezes realmente sórdidos, levando sempre em conta a dignidade das vítimas”, acrescenta.
O tribunal tinha proibido inicialmente que o público e os jornalistas tivessem acesso aos vídeos, filmados e legendados pelo réu, Dominique Pelicot, uma decisão à qual as partes civis se opuseram para que tudo fosse mostrado.
Courbet era “mais favorável” a vê-los. “Na audiência, me dei conta da importância de que fossem vistos porque são eloquentes e integram o julgamento”.
Para se deparar com a brutalidade, o jornalista tenta se agarrar a “imagens da vida cotidiana”.
Gisèle Pelicot “estava deitada, sem reagir (…) Podíamos escutar claramente os roncos”, disse Philippe Siuberski, jornalista da AFP baseado em Montpellier, que também cobriu o julgamento desde o início.
“Fazemos nosso trabalho como jornalistas, mas não é necessariamente algo que seja muito agradável de ver. Olhava entre 2-3 segundos, depois voltava para minhas anotações, via a reação de Dominique Pelicot, a de Gisèle Pelicot… “, acrescenta o jornalista, que um dia preferiu deixar a sala antes da exibição de um vídeo de 15 minutos.
“Mais que as palavras, a imagem fica na retina e isso pode tocar em cordas sensíveis”, diz Siuberski, traçando um paralelo entre o que viu em Avignon e o que viveu durante a cobertura do julgamento do pedófilo Marc Dutroux, julgado em 2004 em Arlon (Bélgica) por sequestro, rapto, estupro e assassinato de meninas e adolescentes.
– “Obrigado, Gisèle” –
Por coincidência de calendário e do pessoal disponível da AFP em Marselha, este julgamento tão simbólico da violência sofrida sobretudo pelas mulheres foi coberto quase exclusivamente por homens.
“Idealmente, teria sido bom ter um binômio homem-mulher, mas tivermos que lidar com a disponibilidade e as reticências que fatos como estes podem suscitar, e respeitá-los”, explica Wesselingh.
No entanto, é “interessante ter homens confrontados a questionamentos sobre a masculinidade, o comportamento de 50 homens comuns” para “ampliar o olhar da violência contra as mulheres”.
“De fato, isto me fez refletir sobre o tema do consentimento”, admite Courbet. “Este julgamento nos obriga, como homens, a nos fazermos perguntas sobre nosso comportamento passado, presente e, especialmente, futuro”, afirma.
Para Siuberski, o impacto se deve principalmente à personalidade de Gisèle Pelicot, que “nunca saiu da linha do que queria dizer” com “força e comedimento”. “É bastante admirável”, acrescenta.
“É difícil” colocar-se em seu lugar, diz Kantarci. “Como jornalista não deveria, mas quero dizer, ‘Obrigado'”.
Declarações tomadas e editadas por Jessica Lopez.