Corte entendeu que provas foram obtidas com violência policial e reverteu decisão da Justiça paulista. Para especialista, casos como esse devem levar policiais a rever condutas. A análise das câmeras corporais de dois policiais militares de São Paulo levou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a anular as provas e absolver um homem condenado a 7 anos e 6 meses de prisão por tráfico de drogas.
Por unanimidade, os ministros da Quinta Turma do STJ entenderam que os vídeos gravados pelas câmeras dos PMs mostraram que o homem havia sido abordado sem um motivo válido – tecnicamente chamado pelos agentes de “fundada suspeita” — e sofrido violência policial, que incluiu murros, enforcamento e chicotadas nas costas.
O julgamento foi no último dia 29. O caso chegou ao STJ depois que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve a condenação do réu, em segunda instância, e a Defensoria Pública recorreu.
Dois desembargadores paulistas, da 13ª Câmara Criminal, consideraram que não houve violência policial. Já um terceiro fez uma análise detalhada dos vídeos e votou por anular as provas, mas acabou vencido.
O caso foi revertido no STJ. “A abordagem policial sem fundada suspeita e com emprego de violência configura violação aos direitos humanos e invalida as provas obtidas”, decidiu o tribunal, na linha do voto do relator, ministro Ribeiro Dantas.
O caso
Ministro Barroso determina uso obrigatório de câmeras corporais pela PM de SP
O homem de 26 anos foi revistado pelos PMs em uma área de mata próxima à rua de um conjunto habitacional de Itapevi (SP), em março de 2023.
Ele não estava armado, não resistiu à ação da polícia e inicialmente não carregava drogas. Após a abordagem, contudo, ele mostrou aos policiais uma árvore onde havia uma sacola com porções de maconha, cocaína e crack (265 gramas, no total).
Levado para a rua, fora da mata, o homem disse que estava vendendo drogas, confissão que foi filmada pela câmera de um dos PMs. Posteriormente, durante o processo, ele alegou que confessou porque tinha sido torturado.
👮♂️Os dois policiais que tiveram suas câmeras analisadas prestaram depoimento à Justiça. Eles disseram que chegaram ao suspeito porque o viram correr com uma sacola para dentro da mata, depois que um outro grupo de pessoas, que estava na rua, foi abordado por outros PMs.
“Nessa contextura, em que o acusado restou flagrado, em local conhecido como ponto de venda de drogas, portando uma sacola e, ao notar a presença policial, empreendeu fuga, evidencia-se a presença de fundadas suspeitas a legitimar a abordagem policial”, afirmou o relator no TJ-SP, desembargador Adilson Simoni.
Para ele, a alegação de que o réu sofreu violência policial não ficou comprovada.
Análise dos vídeos
🎥No voto divergente no TJ-SP, o desembargador Marcelo Semer analisou os vídeos das câmeras corporais e apontou que:
diferentemente do que disseram em juízo, os dois PMs não participaram do início da abordagem, o que torna impossível que tenham visto o homem correr com uma sacola para dentro da mata. Portanto, não teria havido a chamada “fundada suspeita” para a revista pessoal
um dos policiais deu murros na cabeça do suspeito e o enforcou antes de ele mostrar onde a sacola com as drogas estava
no escuro da mata, o homem aparece em um trecho das gravações “com a camisa levantada e as costas à mostra”, quando é chicoteado com um galho. Laudo do Instituto Médico Legal (IML) confirmou as agressões nas costas;
um dos policiais tampa sua câmera em momentos importantes da abordagem;
o homem entregou aos PMs um maço de dinheiro que levava no bolso, mas a quantia não foi formalmente apreendida — o que o magistrado classificou como “indício de furto” por parte dos policiais;
todos os vídeos da abordagem foram enviados à Justiça sem áudio, exceto o que continha a confissão do acusado — o que levanta a suspeita de que os policiais tenham tentado dificultar a apuração do caso.
Com base nesses pontos, o STJ anulou as provas e mandou soltar o homem.
“Considerando que foi detalhado no voto vencido que as provas da materialidade delitiva do crime [de tráfico] pelo qual foi condenado o paciente foram obtidas mediante o emprego de violência física assemelhada à tortura, é medida que se impõe a declaração de sua nulidade, com a consequente absolvição do réu”, decidiu o tribunal.
Mudança de postura
Câmera corporal em uniforme de policial militar do Estado de São Paulo.
Rovena Rosa/Agência Brasil
Para o advogado criminalista e professor da USP Pierpaolo Bottini, casos como esse devem levar a polícia a rever sua conduta para evitar novas anulações no futuro, sobretudo em um cenário em que o uso de câmeras corporais tem se expandido.
“A posição firme [da Justiça] sobre a nulidade de qualquer produto obtido mediante tortura contribui para a mudança de postura, sempre que aliada à responsabilização penal daqueles que praticaram o ato”, disse Bottini.
“O Estado não pode compactuar com nada obtido mediante tortura, sob pena de incentivar abusos e cancelar garantias individuais. O grau de civilidade de uma sociedade é proporcional ao rechaço à tortura”, completou o criminalista.
A Polícia Militar de São Paulo informou ao g1 que abriu inquérito sobre o caso e “identificou indícios de crime militar na conduta de um policial e de infração disciplinar em outro”.
“O caso foi enviado à Justiça Militar, onde o Ministério Público solicitou o arquivamento do crime, classificando-o como infração disciplinar. A Justiça acatou o pedido, e, no âmbito administrativo, o policial foi punido de acordo com o Regulamento Disciplinar da corporação”, acrescentou a PM.
A reportagem perguntou qual foi a punição aplicada ao policial, mas não recebeu informações detalhadas.