Pesquisadora Elisabete Aparecida de Nadai Fernandes, do Cena/USP, relembra que comercialização do alimento abaixo do valor de mercado despertou desconfiança e levou a rastreamento que constatou radiação. Latas de leite radioativo à venda no Brasil
Biblioteca Nacional
O dia 26 de abril de 1986 ficou marcado pelo acidente nuclear mais grave da história, em Chernobyl, na antiga União Soviética e, atualmente, Ucrânia. Apesar da distância, o episódio gerou riscos de contaminação de crianças brasileiras por leite com radiação, e um laboratório em Piracicaba (SP), interior de São Paulo, teve papel fundamental na emissão desse alerta.
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A unidade de estudos é o Laboratório de Radioisótopos do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP), comandado por Elisabete Aparecida de Nadai Fernandes, que também atuou no acidente de vazamento de Césio 137, em Goiânia, em 1987. Neste ano, a pesquisadora vai receber o Prêmio Fundação Bunge na categoria Vida e Obra.
A seguir, entenda como o trabalho de Elisabete e equipe se cruzaram com os dois acidentes nucleares:
Esta foto de arquivo de 26 de abril de 1986 mostra uma vista aérea da usina nuclear ucraniana de Chernobyl, com danos causados por uma explosão e incêndio no reator quatro, que enviou grandes quantidades de material radioativo para a atmosfera
AP Photo/ Volodymyr Repik
Como os estudos começaram 🌾
Estudos de rastreabilidade de alimentos no laboratório começaram entre as décadas de 70 e 80, com a cana-de-açúcar. Na época, a preocupação era com a produção de açúcar e etanol, e com a qualidade da matéria-prima.
A colheita da cana era feita de forma manual e o carregamento por pás carregadeiras. No momento em que as pás recolhiam a cana, acabavam levando junto para dentro das indústrias uma grande quantidade de terra fértil, da parte superficial do solo.
Ao entrar nas máquinas, a terra causava desgaste das partes metálicas. Além disso, os elementos do solo também podiam acabar chegando até o produto final. Estes problemas deram início aos estudos de rastreabilidade das produções alimentícias no laboratório do Cena, que investigava até onde aqueles resíduos podiam chegar e o impacto deles.
Imagem da usina de Chernobyl e da cidade fantasma de Pripyat
Gleb Garanich/Reuters
Leite em pó contaminado☢️
Pouco tempo após o pior acidente em Chernobyl, causado pela explosão de um reator, diferentes marcas de leite em pó vindas da Europa passaram a ser comercializadas no Brasil com preço muito abaixo do comum, o que despertou a atenção e preocupação de Elisabete, do laboratório e demais órgãos.
O Cena possui ligação com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), então, quando a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) precisou de um organismo para realizar as análises dos produtos que estavam entrando no país, ele foi indicado.
“Recebemos diversas amostras de leite, muitas vezes por intermédio de professores que tinham projetos na Amazônia. Lá tinha a zona franca da Manaus, e por ali entravam diversas latas vindas da Europa. Nós pedíamos que enviassem essas amostras e, sim, elas continham radionuclídeos [fontes de radiação], que não deveriam estar ali”, relembra a cientista.
As latas de leite, segundo Elisabete, tinham um design visual atraente e chamavam a atenção do consumidor, principalmente por serem produtos importados com preço baixo.
Chernobyl, em foto feita em 2022
AP Photo/Efrem Lukatsky, File
Encaminhadas para merenda escolar 🥛
Todo lugar em que encontrava, a pesquisadora recolhia amostras dos leites. E todos os exames atestavam contaminação. As latas que vinham em grandes fardos eram encaminhados para merenda escolar.
“A população começou a ter noção do que tinha acontecido, a mídia começou a disseminar a questão do acidente e que possivelmente havia alguns produtos já disponibilizados (e contaminados) no Brasil. Então, algumas creches do entorno da região nos procuravam e traziam essas amostras, e, de fato, também tinham radionuclídeos.”
A pesquisadora conta também que os níveis de contaminação identificados estavam acima do limite permitido dentro do Brasil. O limite foi ultrapassado não só no Brasil, mas também na Europa e Estados Unidos.
Sobre possíveis efeitos no organismo das pessoas que consumiram o leite contaminado, Elisabete explica que o laboratório não tem conclusões a respeito.
“Uma criança que só se alimenta de leite tem uma chance maior, ainda mais pelo pequeno corpo que tem, de estar ingerindo e, possivelmente, tendo alguma reação. Mas eu, particularmente, e nós aqui do laboratório não temos essa resposta”, admite.
A medida adotada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), à época, foi aumentar o nível de tolerância de radioatividade nos alimentos importados, equiparando ela aos padrões europeus, o que permitiu a disponibilização dos alimentos. Uma resolução publicada em Diário Oficial apontou o sistema vigente na Comunidade Econômica Europeia como o “mais restritivo dentre os existentes”. Um laudo também apontou que o leite era “apropriado ao consumo humano”.
Local onde aconteceu a tragédia com césio 137, em Goiânia
Reprodução
Acidente do Césio 137 ⚠️
No ano seguinte ao acidente de Chernobyl, em 1987, o Brasil sofreu com o caso do Césio-137, em Goiânia. Dois catadores de recicláveis encontraram uma cápsula contendo o material radioativo em um equipamento de uma clínica de radiografia.
Elisabete e o laboratório foram mais uma vez acionados para realizar testes e estudos de contaminação. Desta vez, para analisar uma árvore frutífera que foi contaminada pela substância.
“Eles quebraram essa cápsula sob uma mangueira que estava com frutos, em cima de um pequeno carpete, sobre as raízes. Aí, eles levaram pra dentro de casa, mas o que caiu ali naquele carpete e com aquela chuva torrencial, aquilo entrou pela raiz, foi absorvido pela planta, foi levado até a copa da árvore. Ou seja, a árvore passou a ficar com Césio 137”, conta Elisabete.
Um professor, encaminhado pela Agência Internacional de Energia Atômica, passou a enviar amostras das folhas e dos frutos da mangueira para o laboratório fazer análises. Elisabete foi quem realizou os testes.
Elisabete Aparecida de Nadai Fernandes, responsável pelo Laboratório de Radioisótopos do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA/USP) em Piracicaba
Keiny Andrade
Mangas contaminadas 🥭
As análises eram feitas colocando as folhas sobre uma placa fotográfica que fica no escuro. As mangas também tiveram testes, quando ficou constatado que estavam com muito césio. Depois, mais testes foram feitos para saber se a fruta estava contaminada somente na superfície ou se havia absorvido a substância.
Dividida igualmente em três partes, casca, caroço e a polpa, foi possível perceber que a contaminação era igual em todas as partes, ou seja, as frutas estavam totalmente contaminadas. Isso provava que a árvore havia absorvido o césio.
A pesquisadora também conduziu mais estudos sobre o acidente, analisando o raio de distância de contaminação a partir do local da mangueira.
Elisabete explica que o acidente em Goiânia colocou o Brasil no mapa de países contaminados por radiação. A partir disto, passou-se a exigir novos certificados para exportação de produções agrícolas do país, após análise especializada dos produtos.
O Cena foi e é responsável até hoje pela realização desses testes, feitos a partir de amostras coletadas de forma minuciosa, e pela emissão dos certificados de não contaminação. Mais de 100 mil análises já foram feitas pelo laboratório para exportação.
*Sob supervisão de Claudia Assencio e Rodrigo Pereira
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