Administração diz que iniciativa é inconstitucional e compromete o planejamento de uso e ocupação do solo e a política habitacional local, o que é contestado por advogados de comunidades. Movimento avalia recurso e realiza reuniões com MP e presidente da Câmara. Prédio da Prefeitura de Piracicaba
Prefeitura municipal de Piracicaba
A Prefeitura de Piracicaba (SP) conquistou na Justiça uma liminar que suspende uma lei que prevê acolhimento social de moradores de ocupações que são alvo de despejo. A administração municipal argumenta que a legislação é inconstitucional e compromete o planejamento de uso e ocupação do solo e a política habitacional local, o que é contestado por advogados de comunidades da cidade. A suspensão dela vale até o julgamento da ação.
A proposta, que ficou conhecida como “Despejo Zero”, é de iniciativa popular, ganhou apoio de vereadores e foi aprovada pelo Legislativo no dia 15 de dezembro, em dois turnos, mas foi vetada pela prefeitura no início de janeiro. Conforme prevê a legislação, o veto da prefeitura também passou por votação no Legislativo e não foi aceito pelos vereadores. Assim, a lei entrou em vigor.
Na ação, a prefeitura argumenta que a lei trata de questões que invadem a competência do Poder Executivo, que é o responsável por tratar da organização do solo urbano e programas de moradia. Também aponta que gera despesas com logística e alojamento de pessoas e pertences após despejos, sem apontar de onde vai vir o recurso para o custeio.
Afirma, ainda, que “a aprovação da referida lei tem efeito nefasto sobre a ocupação do solo no Município de Piracicaba, pois estimula sobremaneira o surgimento de ocupações irregulares no perímetro do Município, o que vem sendo combatido pela Administração Municipal e órgãos fiscalizatórios, inclusive o Ministério Público do Estado de São Paulo”, conforme trecho da liminar judicial.
“Em tese, a Lei Municipal nº 9.880/23 afronta a independência e separação dos poderes […], ao estabelecer critérios para a prática de medidas administrativas a serem tomadas pelo Poder Executivo para o cumprimento das ordens de despejo ou remoção, invadindo sua seara privativa, além de criar, indiretamente, despesas a serem custeadas pela Administração Pública”, avaliou a juíza desembargadora Silvia Rocha ao conceder a liminar para a prefeitura.
Ela também cita possível invasão da competência da União para legislar sorbe regras de transição em reintegrações de posse e observa que uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2 de novembro de 2022 já prevê direitos semelhantes aos moradores nessas condições.
Lei foi aprovada pela Câmara de Piracicaba, que é alvo da ação de inconstitucionalidade
Guilherme Leite
O que prevê a lei
O objetivo da lei é minimizar os impactos sociais das reintegrações de posse determinadas pela Justiça no município, através do estabelecimento de uma série de condutas a serem adotadas pelo poder público para garantir que os processos ocorram de forma humanizada.
De acordo com a proposta, as ordens de despejo ou remoção na cidade devem obedecer os seguintes critérios:
Garantia de habitação às famílias vulneráveis, sem ameaça de remoção;
Manutenção do acesso a serviços de comunicação, energia elétrica, água potável, saneamento e coleta de lixo;
Proteção contra intempéries climáticas ou ameaças à saúde e à vida;
Acesso aos meios de subsistência, inclusive acesso à terra, infraestrutura, fontes de renda e trabalho;
Privacidade, segurança e proteção contra violência.
O texto também estabelece que o poder público deve notificar as pessoas que serão desalojadas; avaliar os impactos socioeconômicos que serão causados pela pandemia aos moradores; apresentar índices sobre nível de contaminação por Covid-19 nas áreas e proporção de pessoas vacinadas; realizar audiência de mediação entre as partes; e inserir as pessoas removidas em programas e políticas sociais.
Comunidade Renascer, em Piracicaba
Júlia Heloisa Silva/ g1
Movimento se mobiliza contra liminar
Advogado popular que representa as comunidades, Caio Garcia Figueiredo informou que já estão sendo realizadas ações contra a suspensão da lei e uma delas foi uma reunião entre lideranças do movimento por moradia de Piracicaba e moradores de comunidades com o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mario Sarrubbo, na segunda-feira (10).
“Ele vai se manifestar no processo nas próximas semanas desse mês. […] Ele se dispôs a receber pareceres em relação à lei direto no endereço de e-mail, um passo que a gente vai dar nos próximos dias”, explicou.
Também foi realizada uma reunião com o presidente da Câmara de Piracicaba, Wagner Alexandre de Oliveira (CID), o Wagnão, na qual foi solicitada intermediação para um encontro com o prefeito Luciano Almeida (sem partido).
Além disso, está sendo avaliado um recurso contra a liminar e pedido para que o movimento seja inserido na ação como um terceiro interessado e possa se manifestar nela, uma vez que as ações de inconstitucionalidade são ajuizadas contra a Câmara que aprovou a lei.
Reunião do movimento com o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mario Sarrubbo
Arquivo pessoal
Advogados populares contestam prefeitura
Em janeiro, advogados populares das ocupações Renascer, Vitória-Pantanal e União divulgaram uma nota técnica contestando os argumentos da prefeitura. Eles citam que o projeto foi construído pelas associações de moradores das comunidades em diversas assembleias, junto com a população das favelas e quadro técnico, além de ter 11 coautores eleitos pelo voto popular. Acrescentam, ainda, que além de ser aprovado pela Câmara, o projeto não teve parecer contrário de qualquer comissão do Legislativo.
Quanto aos gastos que a prefeitura aponta que seria necessários para acolhimento das famílias, o texto argumenta que haverá “intensa” despesa dos cofres públicos nas áreas de segurança e saúde pública após possíveis reintegrações de posse nas comunidades.
“[O projeto] não prevê prazo e nem especifica os meios pelo qual a administração pública deverá cumprir as condicionantes para reintegrações de posse e despejo, portanto ficando sua execução atrelada a completa iniciativa do Prefeito”, completa.
Moradores se reuniram em frente à Câmara durante manifestação
Caio Garcia Figueiredo
Quanto à alegação de comprometimento do planejamento de uso e ocupação de solo, a nota técnica cita trecho da Constituição que prevê que cabe ao poder público resolver as questões de imóveis que não cumprem função social.
“Atualmente na cidade de Piracicaba, não existe política pública de moradia, desrespeitando o Plano Diretor. Muito menos políticas socioeconômicas em vigor na cidade que garantam condições mínimas de segurança social e que torne viável uma opção às famílias vulneráveis que ocupam áreas públicas e particulares, como também está previsto pelo PDD (plano diretor de desenvolvimento)”.
“A forma de combater tais ocupações é por meio de um programa de habitação digno para famílias de baixa renda, e não excluindo e marginalizando cada vez mais os moradores de tais territórios”, argumenta, em outro trecho.
A nota aponta, ainda, que a lei não trata de previsão orçamentária, cargos e funções de administração ou de criação ou estruturação de órgãos públicos.
Moradores da Comunidade Renascer fazem ato por moradia em Piracicaba
Bruno Leoni
Pobreza e déficit habitacional
O projeto que gerou a lei apresenta dados do Cadastro Único (CadÚnico) que mostram um aumento de 30% no número de famílias em situação de extrema pobreza em Piracicaba entre o final de 2019 e fevereiro de 2021. Segundo as informações, em 2021, 13 mil famílias da cidade viviam com renda mensal de até R$ 89 por pessoa.
“Com esta renda, é inviável para parte considerável da população a possibilidade de se alimentar, quanto mais arcar com os altos custos do acesso à moradia pela compra de casa própria ou por aluguel dentro do mercado imobiliário especulativo”, argumentam.
Também apontam que o Censo Municipal da População em Situação de Rua de 2021 feito em Piracicaba demonstra que 32,2% dos entrevistados passaram a morar nas ruas desde 2019, sendo 23,7% acumulados do ano de 2020 (ano que se iniciou a pandemia).
“Dentro da situação do município de Piracicaba, há de se evidenciar que o caos social que enfrentamos será severamente agravado no caso de não garantirmos, via legislação, este regime de transição. Há uma ligação intrínseca entre casos de aumento de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, do aumento da população em situação de rua com as consequências da pandemia de Covid-19 e da falta de responsabilidade histórica do Poder Público Municipal aos problemas relacionados ao acesso à moradia digna”, diz trecho da justificativa do projeto.
O texto cita, ainda, dados do Plano Municipal de Habitação de Intesse Social (PMHIS) que mostra que, segundo dados pré-pandemia de 2020, Piracicaba possuía déficit habitacional de 8.818 unidades habitacionais.
Manifestantes em frente à prefeitura.
Bruno Leoni
Comunidade reúne 470 famílias
Uma das áreas envolvida em imbróglio judicial para reintegração de posse abriga a Comunidade Renascer, que segundo dados da líder comunitária informados em agosto, reúne cerca de 470 famílias.
Em junho de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acolheu um recurso do Ministério Público e Defensoria Pública do Estado de São Paulo e suspendeu uma reintegração de posse prevista na área, que fica no bairro Novo Horizonte.
Em 2020, outra reintegração de posse que havia sido determinada, também foi suspensa pelo TJ-SP depois do início da pandemia de coronavírus, devido ao risco de proliferação da Covid-19.
Desde a suspensão do prazo para a reintegração de posse na comunidade, moradores da área têm realizado protestos para cobrar ações do poder público. Um deles ocorreu em fevereiro de 2022.
Convênio prevê 1,1 mil moradias populares
A atual gestão municipal ainda não construiu moradias para famílias de baixa renda. Um convênio entre a prefeitura e governo estadual prevê a construção de 1.110 moradias populares na cidade por meio do programa Nossa Casa, modalidade Preço Social.
Os projetos para a cessão de três áreas para a construção das moradias foram enviados à Câmara. As áreas ficam nos bairros São Jorge, Campos do Conde e Monte Feliz, com previsão, respectivamente, da construção de 390, 420 e 300 unidades habitacionais.
A administração informou ao g1 que orienta as famílias de baixa renda que necessitam de moradia a realizarem ou atualizarem seu Cadastro de Demanda junto ao Setor de Serviço Social (no prédio da antiga Emdhap – das 8h30 às 16h30). Este cadastro deve ser atualizado anualmente.
“Assim que, novos empreendimentos forem lançados, ofertando habitação de interesse social, a Semuhget [Secretaria Municipal de Habitação e Gestão Territorial] divulgará o edital com os critérios de seleção, para que as famílias interessadas se inscrevam”, finalizou. Questionada pela reportagem, a prefeitura não informou prazos.
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