A pandemia de covid-19 expôs uma urgência até então subestimada: a necessidade de políticas de saúde acessíveis a todos e, mais que isso, a um toque na tela do celular. Em meio a uma avalanche de desinformação, os profissionais de saúde tiveram que adaptar o atendimento para estar a apenas uma chamada de distância. Assim, a telessaúde – termo mais abrangente que a popular “telemedicina”, pois envolve não só médicos, mas outros profissionais como psicólogos e enfermeiros – ganhou força em Santa Catarina e no Brasil.
Mas será que o serviço realmente fez os catarinenses se cuidarem mais? Para explorar os efeitos e desafios desse atendimento remoto, conversamos com profissionais de saúde, pesquisadores e gestores, explorando nuances éticas e práticas desta abordagem, que integra todas as áreas de saúde e ganha o nome de “saúde digital”. No pós-pandemia, essa prática se consolidou, sendo vista como uma forma viável de expandir o acesso ao cuidado.
O que é telessaúde?
A telessaúde abrange todas as áreas da saúde que podem atuar à distância por meio de tecnologias, oferecendo suporte remoto em uma abordagem integrada e colaborativa. “Telemedicina”, por outro lado, se limita ao atendimento médico. “Telessaúde” expande esse conceito, permitindo que profissionais de diferentes áreas atuem remotamente, promovendo uma diversidade de serviços de saúde digital.
Os primeiros passos em Santa Catarina
Segundo a professora Maria Cristina Marino Calvo, coordenadora do Núcleo de Telessaúde da UFSC, a telessaúde no estado começou muito antes da pandemia. Desde o início dos anos 2000, com um sistema de telediagnóstico focado em laudos de eletrocardiogramas (ECG) para municípios distantes, o Sistema de Telemedicina e Telessaúde foi desenvolvido em parceria entre o Centro Tecnológico da UFSC e a SES-SC (Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina).
Em 2007, o Ministério da Saúde criou o Programa de Telessaúde Brasil, expandindo ações de teleconsultoria, tele-educação e telediagnóstico. A UFSC se tornou referência nacional, oferecendo apoio à Atenção Primária e qualificando atendimentos em Santa Catarina e em outras regiões do Brasil.
“O núcleo atua como um grande apoio à Atenção Primária em Saúde, qualificando os atendimentos com tecnologias que ampliam o alcance dos serviços e reduzem a necessidade de deslocamento dos pacientes”, afirma Calvo.
Com o tempo, os serviços do Núcleo se expandiram. Em 2018, a UFSC passou a oferecer diagnóstico à distância em dermatologia para todo o país, e em 2024 ampliou o serviço para Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Durante a pandemia, a regulamentação dos teleatendimentos possibilitou que consultas entre profissionais e pacientes fossem realizadas de forma direta.
“Hoje, conseguimos atender 100% dos municípios catarinenses e já temos mais de 60 mil profissionais cadastrados em vários estados”, explica a professora. A telessaúde também contribui para a regulação de filas de encaminhamento para especialidades médicas, reduzindo o tempo de espera e custos.
Só para se ter uma ideia, o Núcleo de Telessaúde da UFSC oferece telediagnóstico em várias modalidades, como ECG (eletrocardiograma) e dermatologia, atuando na Atenção Básica.
Segundo o site da Universidade, em 2022, foram realizados mais de 260 mil exames de ECG em Santa Catarina, superando recordes anteriores. As redes de telediagnóstico são estruturadas para serem autossustentáveis, garantindo acesso a laudos e suporte próximo aos pacientes. Além disso, o teleatendimento tem se expandido, integrando consultas e orientações, promovendo um atendimento mais eficiente e adaptado às necessidades locais.
No estado, há ainda empresas privadas que oferecem os serviços de telessaúde para o setor público. Um dos exemplos é a catarinense TopMed, com 18 anos de atuação em saúde digital. A empresa atende cidades como Florianópolis, Blumenau, Balneário Camboriú, Botuverá, Esteio, Rodeio, Ascurra e Pomerode que disponibilizam serviços de telemedicinas de forma gratuita para os usuários dos municípios.
Segundo o site da empresa, a TopMed oferece atendimento médico 24 horas por dia e 7 dias por semana de forma fácil através de 0800, whatsapp, aplicativo e web.”
Alô Saúde Floripa: uma inovação em Florianópolis
O projeto Alô Saúde Floripa, desenvolvido pela Prefeitura de Florianópolis, se destacou como pioneiro na implementação de serviços de telessaúde no SUS de uma capital. Inspirado em iniciativas semelhantes na Inglaterra, Portugal e Canadá, o serviço foi lançado em março de 2020, no início da pandemia, e teve papel crucial na prevenção, orientação, atendimento e apoio à vacinação.
“A ideia era orientar o usuário dentro da Rede de Atenção à Saúde,” explica a prefeitura, acrescentando que o projeto direciona a população para atendimento presencial nas unidades municipais, conforme a necessidade de cada caso.
O serviço oferece atendimento pré-clínico, de enfermagem e médico por telefone, videochamada ou chat, além de fornecer informações sobre saúde, medicamentos e vacinação.
Durante a pandemia, o atendimento foi crucial para garantir resolutividade e segurança. Segundo a médica de família Gabriela Bley, responsável técnica do projeto, “o Alô Saúde Floripa oferece um direcionamento mais claro e resolutivo às demandas do usuário, simplificando o acesso aos serviços.”
Com resultados positivos, o Alô Saúde Floripa ampliou o atendimento para turistas durante o verão, registrando 95% de resolutividade dos casos. Outra inovação foi o monitoramento de exames laboratoriais, que agiliza a comunicação com a população, padronizando informações e melhorando a efetividade.
Quem trabalha no dia a dia
Para o urologista João Brunhara, do Hospital Albert Einstein e cofundador da plataforma Omens, os desafios da telemedicina envolvem construir uma relação próxima com o paciente virtualmente. “É preciso superar a ausência de informações do exame físico, como medir pressão arterial ou palpar uma área dolorida. Por isso, alguns tipos de queixas funcionam melhor que outros na telemedicina,” afirma. Ele exemplifica que, em dermatologia, o diagnóstico por imagem tem sido eficaz para suprir a ausência de exame físico direto.
O urologista ressalta que o modelo de teleconsultas segue o modelo presencial: o paciente agenda um horário, e múltiplas consultas no mesmo dia são tratadas de forma independente. “Em formatos mais flexíveis, como troca de mensagens por dias, é necessário um acordo prévio entre profissional e paciente,” explica. Em relação à ética dos atestados, Brunhara afirma que o médico deve acreditar no relato do paciente, mas pode limitar a duração do atestado conforme a queixa. “Em casos de dor de cabeça incapacitante, o médico pode emitir um atestado de um dia ao invés de uma semana”, exemplifica.
Avanços e desafios
Segundo a pesquisadora e professora da UFSC, Maria Cristina Marino Calvo, a telessaúde tem o potencial de levar cuidados especializados a regiões remotas, oferecendo suporte técnico e clínico aos profissionais da saúde e promovendo educação continuada. As teleconsultorias e telediagnósticos, como aponta a professora, têm impacto direto na qualificação dos encaminhamentos, evitando atendimentos desnecessários e garantindo que os casos graves sejam atendidos de forma eficiente.
Contudo, os desafios permanecem. Entre os pontos negativos estão o risco de considerar a telessaúde como substituta do cuidado presencial e a exclusão digital de quem não tem acesso à internet ou habilidade com dispositivos. A professora Calvo destaca ainda a importância de ações que promovam uma inclusão digital no SUS, pois “a telessaúde deve ser um complemento, e não um substituto, para o atendimento presencial”.
A telessaúde como exemplo para o futuro da saúde pública
Maria Cristina Marino Calvo enfatiza que as modalidades de apoio e cuidados remotos são essenciais para ampliar o acesso à saúde em áreas isoladas. Ela argumenta que, para garantir a eficácia dessas ações, é necessário investir no acesso à internet e em equipamentos adequados, o que não só melhora a qualidade do atendimento, mas também proporciona segurança aos profissionais de saúde que operam em contextos com recursos limitados.
A professora e pesquisadora ressalta que a telessaúde não deve ser vista como um substituto ao atendimento presencial, mas sim como uma complementação vital. Ela defende que essas iniciativas devem estar sempre alinhadas ao modelo de saúde preconizado pelo Sistema Único de Saúde, com uma estrutura hierárquica que priorize a atenção primária e que direcione casos para a atenção especializada somente quando necessário.
Essa abordagem coordenada é fundamental para promover um atendimento de qualidade, garantindo que todos os cidadãos, independentemente de sua localização, tenham acesso ao cuidado necessário.
Essas reflexões destacam a importância da telessaúde como uma ferramenta que não apenas melhora a eficiência do sistema de saúde, mas também é um passo significativo em direção à equidade no acesso aos serviços de saúde no Brasil.