Justificativa do MPF é de que, embora a jovem não tenha tido seus direitos trabalhistas respeitados, não estavam submetidas a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou à condições degradantes de trabalho. Indígena foi resgatada em Sorocaba (SP)
TV TEM/Reprodução
O Ministério Público Federal (MPF) pediu o arquivamento das investigações sobre o caso da indígena de 21 anos que era mantida por um casal em condições análogas à escravidão em Sorocaba (SP) desde 2021. A defesa alega que jovem não teria sido ouvido pela Polícia Federal.
A justificativa do MPF é de que, embora a jovem não tenha tido seus direitos trabalhistas respeitados, não estavam submetidas a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho.
Ainda salienta que a indígena vivia sob as mesmas condições de higiene, saúde, alimentação, habitação e segurança de seus empregadores, desfrutando, inclusive, de folgas do trabalho e da possibilidade de realizar cursos de formação fora do ambiente residencial e de trabalho.
Em nota enviada ao g1, as advogada que representam a indígena, Emanuela Barros e Melissa Constantino, afirmam que a decisão tomada é equivocada, pois a jovem nem ao menos foi ouvida pela PF. Segundo as advogadas, a oitiva estava agendada para o dia 14 de junho e foi cancelada.
Ainda contam que houve uma força tarefa realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) que constatou que havia sim submissão da trabalhadora doméstica à condição análoga à escravidão.
“Ao contrário do afirmado pelo MPF, a vítima dormia no chão, por isso não gozava das mesmas condições de seus empregadores e ainda sofreu assédio sexual tendo o acusado confessado tal prática, degradando por completo o ambiente de trabalho”, explica a advogada.
Além disso, as advogadas afirmam que outras irregularidades foram observadas, como excesso de jornada diária e semanal, não concessão de férias, inadimplemento do décimo terceiro salário, ausência de registro do contrato de trabalho, pagamento de salário inferior ao mínimo legal, condições inadequadas de moradia, pois a trabalhadora dormia em colchão no chão, pelos quase dois anos do contrato de trabalho.
Agora, a defesa estuda a possibilidade de impugnação do arquivamento do Inquérito Policial.
“Vamos dar continuidade na ação trabalhista já proposta na vara do trabalho local, bem como esperamos que a medida protetiva que foi deferida no juizado de violência doméstica prospere e seja dado inicio a ação penal para apurar as denuncias de assédio sexual. Em suma vamos tomar todas as medidas cabíveis para garantir o direito da nossa cliente”, finaliza.
Medida protetiva
A Justiça concedeu uma medida protetiva para a indígena no dia 16 de março. A informação foi confirmada pela advogada da jovem. Segundo ela, a defesa havia solicitado a medida protetiva para a indígena no dia 8 de março.
A medida protetiva é contra o homem investigado por manter a jovem em situação análoga à escravidão. Com a medida, ele está proibido de ter qualquer tipo de contato com a vítima.
Além de toda a denúncia sobre as condições de trabalho da jovem, a advogada informou que também é investigado o crime de assédio por parte do patrão. Para a defesa, a medida é importante para que a vítima se sinta segura para continuar com a denúncia.
Denúncia
A situação foi comprovada após uma denúncia feita pelo Conselho Tutelar ao MTE. Uma força-tarefa foi montada para investigar a situação e os resultados foram apresentados no dia 10 de março. A jovem foi acolhida por uma ONG de Sorocaba.
O casal, que não teve os nomes divulgados, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com 17 itens. Entre as obrigações acertadas com o MTE, está um pagamento de R$ 20 mil. Eles também deverão pagar à indígena todas as obrigações trabalhistas previstas em lei.
Mudança para Sorocaba
De acordo com o MTE, a jovem vivia na aldeia indígena Cartucho, no noroeste do Amazonas, e se mudou para Sorocaba com a promessa de um emprego com carteira assinada como babá.
No entanto, ao chegar ao local onde deveria trabalhar, um apartamento no Centro, a jovem encontrou outra situação. Segundo o órgão, não havia, por exemplo, registro em carteira, nem pagamento integral do salário prometido.
Além disso, a investigação apontou que a indígena tinha jornadas exaustivas, sem horário fixo para trabalhar, além de não ter tirado férias no período em que ficou na residência. Foi apontado também que ela dormiu no chão, de forma improvisada, e que tinha de atuar como babá e empregada doméstica ao mesmo tempo, inclusive aos fins de semana.
“O casal, em um primeiro momento, negou. Mas, diante da documentação que a gente tinha e as informações que a gente já possuía, eles acabaram concordando que realmente agiram mal, inclusive, prometeram, por escrito, no TAC, que jamais voltarão a fazer isso”, explica Ubiratan Vieira, chefe regional da fiscalização do trabalho do MTE.
Advogada segura mão de indígena resgatada em Sorocaba
Reprodução/TV TEM
Tráfico humano
Segundo o MTE, além da situação análoga à escravidão, está sendo investigado o crime de tráfico humano. Marcos Vinícius Gonçalves, coordenador de combate ao trabalho escravo do MPT, contou que a vítima só ficou sabendo que o trabalho seria em Sorocaba pouco antes de embarcar.
“Ela foi convidada. Isso ocorreu até de forma abrupta. Foi comprada a passagem dela, e ela ficou sabendo que o trabalho dela seria aqui em Sorocaba”, afirma.
A investigação ainda apontou que a indígena é a segunda vítima que o casal trouxe para Sorocaba.
Conforme o Ministério Público do Trabalho, os crimes, a princípio, são: trabalho escravo, previsto Código Penal, artigo 149; e tráfico de pessoas, previsto no artigo 149, também do Código Penal.
“É uma coisa que deverá ser investigada na esfera criminal. O doutor Magno, delegado da Polícia Federal, inclusive, está pronto para instaurar inquérito a respeito para saber se existe algum lucro por trás desses casos, trazendo trabalhadores para Sorocaba para serem explorados”, completa Ubiratan.
‘Não sabia como funcionava’
Em entrevista à TV TEM, a indígena disse que só entendeu que estava sendo vítima de trabalho análogo à escravidão após comentar sobre a situação com colegas do curso que fazia em Sorocaba.
“Não sabia como funcionava essa coisa de pagamento, trabalho. Eu fui saber quando comecei o curso, que eu conheci as meninas que estavam junto comigo. Elas começaram a me falar como funcionava, como tinha que ser. Até então, para mim, era normal o que eles me pagavam”, disse a indígena, que não quis se identificar.
Ela disse que foi atraída por um anúncio do Facebook de um trabalho que não exigia experiência. “Eu vim sem saber de nada, mesmo. […] Lá, onde eu moro, não existe muita maldade, sabe? As pessoas confiam muito um no outro, assim. Então, você não vê malícia em ninguém.”
A jovem contou que usava o dinheiro que recebia para pagar a mensalidade do curso de técnica em enfermagem, além de apostilas e outras despesas. Sem mais recursos, ela dependia de amigas para pagar o transporte e lanche.
De acordo com a indígena, assédios do marido da patroa a motivaram a aceitar ajuda. “Eles falam, agora, que fui explorada. Eu cheguei a falar para ela que tinha medo dele. Eu tinha [medo]. É triste para mim. Como estava morando na casa deles, fazia o que tinha que fazer. Dormia em um colchão, no chão, que era no quarto de brinquedos.”
A jovem também disse que teve apoio do pai e do irmão para continuar os estudos. “Meu pai é uma pessoa que está sempre à frente, defendendo o povo indígena, o direito que o povo tem. Meu pai disse que poderia me ajudar só até o terceiro ano. Ele falou ‘agora depende muito de você'”, comentou.
Mesmo após todo o acontecido, ela garante que vai continuar estudando e que pretende, futuramente, fazer um curso de nutrição.
“Vou até o final. Vim aqui para estudar. Vim com essa intenção de ajudar o meu povo, que a condição lá não é tão boa.”
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