Ministério Público do estado faz tratativas com a prefeitura para que alimentos voltem a ser entregues às crianças. Ação da Defensoria Pública conseguiu decisões judiciais favoráveis a duas mães, mas elas ainda não conseguiram fórmulas. Prefeitura cita processo licitatório e diz entender ‘preocupação das mães nesse atendimento’. Raweila dos Reis, Uberlande Prazeres e Geovana Gos, Janaina Torres e Edla Conceição são mães que precisam de leites com fórmulas especiais para os filhos
Arquivo Pessoal
Crianças que precisam de leites com fórmula especial para se alimentar estão há nove meses sem receber o produto do Centro de Recuperação Nutricional Infantil (Cernutri) de Boa Vista, e mães voltaram a cobrar a prefeitura. O Ministério Público acompanha a situação e tenta intermediar junto ao município. Em dois casos, a Justiça obrigou que o leite volte a ser fornecido, o que ainda não ocorreu.
Para entender como as mães têm enfrentado a falta de alimento para os filhos de maneira regular desde novembro de 2023, o g1 conversou com cinco mulheres. Juntas, elas relatam a incerteza pela ausência de respostas sobre a previsão para receber novamente a fórmula que, em alguns casos, custa R$ 377 a lata.
Parece até que nós não temos voz, não temos vez e que somos insignificantes”.
Em nota ao g1 a prefeitura de Boa Vista informou que “conseguiu avançar no processo licitatório para o fornecimento das fórmulas e está tomando todas as providências para adquirir o material o mais breve possível.” (Leia a nota na íntegra mais abaixo)
“Entendemos a preocupação das mães nesse atendimento. Porém, somos obrigados por lei a cumprir os prazos legais da licitação, que é extensa e rigorosa. Tudo que pode ser feito está sendo feito”, destacou a prefeitura.
Ainda sobre a licitação, o município pontuou que “o processo licitatório que constam as fórmulas é composto por 29 itens e todos vêm de outros estados. Destes, 19 itens já foram homologados e a secretaria já solicitou urgência na entrega dos mesmos, entrando em contato direto com as empresas fornecedoras, para o envio imediato do que têm disponível em seus estoques.”
Sem ter como conseguir prover com os custos das latas com a fórmula, as mães acabam recorrendo à rifas, bingos, pedir dinheiro emprestado de amigos e até procurando agiotas — tudo isso para garantir o alimento essencial para os filhos. As mulheres afirmam que há ao menos 100 crianças na mesma situação.
As duas mulheres que conseguiram na Justiça o direito a ter acesso ao leite pelo Cernutri foram a mãe da pequena Maya, de 2 anos, a professora Uberlande Prazeres, de 41 anos; e a mãe do Isaac, de 3, a jovem Geovana Gos, de 18. Em julho, elas contaram ao g1 os dramas que viviam pela falta da fórmula.
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Nos dois casos, as mães são assistidas pela Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR). No caso de Maya, segundo a DPE, a ação foi julgada procedente em 30 de julho de 2024, determinando o fornecimento de 12 latas por mês da fórmula NeoAdvance 400g, de maneira regular e contínua.
No entanto, a Prefeitura de Boa Vista alegou que não possui essa fórmula disponível e com isso a Defensoria solicitou o bloqueio de R$ 10.493,64 das contas do município para a compra de latas suficientes para um período inicial de, ao menos, três meses.
Atualmente, o processo aguarda nova manifestação da Prefeitura de Boa Vista, que ainda não se pronunciou nos autos. Sobre esta fórmula, o município disse ao g1 que ela não é padronizada pelo Cernutri e, “portanto, não são distribuídas pelo município.”
No caso do menino Isaac, em setembro do ano passado, a Justiça determinou que o município fornecesse o alimento para ele. No entanto, a Prefeitura de Boa Vista entrou com um recurso e a Defensoria ficou impedida de solicitar o cumprimento da decisão por meio do bloqueio de valores.
Depois, no dia 13 de agosto de 2024, a Justiça determinou o bloqueio de R$ 19.618,36 para o pagamento das despesas do leite para Isaac. Entretanto, o valor ainda não foi transferido para a conta da mãe do menino devido a problemas técnicos no Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud), responsável pela transferência.
Centro de Recuperação Nutricional Infantil (Cernutri) fica localizado no bairro São Francisco, zona Norte de Boa Vista
Caíque Rodrigues/g1 RR
Por conta disso, o juiz que acompanha o caso enviou uma ordem diretamente ao banco para realizar o bloqueio e a transferência do valor para a conta da mãe.
A Defensoria informou ainda que “tem sido procurada por outros pais ou responsáveis de menores que necessitam de fórmulas especiais, e se coloca à disposição para garantir que os direitos dessas crianças sejam respeitados”. Até agora, são a DPE atua nas duas ações judiciais.
‘Sensação de que não temos voz’
A mãe da pequena Maya, a professora Uberlande Prazeres, de 41 anos, conseguiu na Justiça o direito de ter acesso à fórmula especial.
Pequena Maya Prazeres, de 2 anos, precisa do leite com fórmula especial para se desenvolver
Arquivo Pessoal/Uberlande Prazeres
Quando conversou com o g1 pela primeira vez, ela contou que a luta pela saúde de Maya começou desde o nascimento, quando foi diagnosticada com hérnia diafragmática congênita (uma condição em que partes do abdômen, como intestinos ou estômago, se movem para dentro do peito através de uma abertura no diafragma) apenas 24 horas após o parto.
Desde então, mãe e filha passaram mais tempo no hospital do que em casa. Em Brasília, descobriram que a condição deixou Maya alérgica à proteína do leite de vaca e à soja. Há nove meses ela não recebe a fórmula do Cernutri.
Uberlande falou que já vendeu móveis de casa para conseguir prover o alimento da filha. Relatou que teve que se desfazer de “praticamente todos os seus bens para garantir a compra do alimento para Maya”.
“Já me desfiz de tudo o que tinha. Inclusive, peguei dinheiro emprestado de agiota para manter a alimentação da minha filha. Parece até que nós não temos voz, não temos vez e que somos insignificantes”, disse.
A mãe destacou também que precisou racionar a fórmula que conseguiu comprar para que não faltasse. A filha só pode tomar leite com a fórmula que não possui essas duas proteínas, o NeoAdvance. Sem o leite, a menina teve baixa na imunidade e até contraiu pneumonia.
“Tive que reduzir a quantidade da fórmula para tentar mantê-la nutrida e ela acabou pegando uma gripe que evoluiu rapidamente para uma pneumonia. Agora, ela está bem, mas outro dia, precisei dar sopa três vezes seguidas para minha filha, porque não tinha dinheiro para comprar o leite”, relembrou.
Ela, que é mãe de outros quatro filhos, conta que está “superendividada” por conta do alimento de Maya.
‘Meu filho nunca mais ficou estável’
Pequeno Isaac tem 3 anos e tem sequelas de uma paralisia cerebral e está internado há 3 semanas
Arquivo Pessoal/Geovana Gos
Outra mãe que conseguiu na Justiça o direito a ter acesso à fórmula Ketocal 4:1 foi Geovana Gos. Mãe de Isaac, ela diz que nunca chegou a receber o leite especial da Prefeitura de Boa Vista, mas decidiu, por meio da DPE, entrar com processo judicial contra o município para ter acesso a esse alimento.
Isaac nasceu com paralisia cerebral e uma síndrome de epilepsia grave, condições que requerem cuidados essenciais e, sobretudo, um leite específico, o Ketocal 4:1. Geovana conta que a fórmula foi receitada por um médico quando o menino estava internado.
Agora, Isaac está no trauma do Hospital da Criança internado há três semanas com imunidade baixa, convulsões sérias e uma infecção hospitalar adquirida pelas constantes internações.
Para conseguir dinheiro para a fórmula, ela tem feito rifas e vendido feijoadas, mas nem sempre o que arrecada é suficiente. O consumo de Isaac é de 10 latas por mês, um valor que chega a R$ 3.770 mensais, tornando a situação insustentável financeiramente sem apoio.
Quando o menino fica sem o alimento, as convulsões aumentam, Isaac perde peso e a mãe não vê outra solução a não ser levá-lo ao hospital. Ela diz que vive uma “luta diária para lutar pelos direitos”.
“Entrei com ações na Defensoria Pública duas vezes, mas eles [Prefeitura] apenas recorrem. Na semana retrasada, meu filho teve muitas convulsões, e eu o levei novamente ao Hospital da Criança, onde ele foi internado por falta da fórmula que controla as crises. Ele nunca mais ficou estável”, disse a jovem.
Desde a internação, segundo a mãe, o quadro de Isaac piorou. Agora, ele está com uma infecção hospitalar grave.
“Se ele tivesse acesso à fórmula, estaria em casa e não precisaria ter ido ao hospital. Após o uso do Ketocal, ele apresentou uma melhora significativa nas crises convulsivas”, disse a jovem ao g1.
À época em que a matéria do g1 foi publicada, a Prefeitura chegou a informar que, em âmbito nacional, não há nada pactuado quanto à obrigação de dispensação de fórmulas de nutrição enteral, “portanto, o atendimento com Ketocal só pode acontecer legalmente por decisão judicial”.
‘Seguimos na mesma’
Pequena Luna é filha de Raweila dos Reis e precisa de leites com formulas especiais para se alimentar
Arquivo Pessoal/Raweila dos Reis
Outra mãe que conversou com o g1 em julho deste ano foi a cabeleireira Raweila dos Reis, de 36 anos. Ela é mãe da Luna, de 1 ano e 8 meses, que vive com uma síndrome que afeta o desenvolvimento e a deixa sensível ao leite comum.
Desde que conversou com a reportagem, Luna chegou a ser internada devido à falta da fórmula e, ainda sem resposta do Cernutri, Raweila tem recorrido à rifas para bancar os valores.
No caso de Luna, o leite necessário é o Alfamino, que pode custar R$ 250 a lata. Ela precisa de 13 latas por mês, o que daria um valor de R$ 3.250, considerado alto para mãe, que largou o emprego para se dedicar à filha. A bebê é portadora da Síndrome de Edwards, condição rara que causa alterações físicas e no desenvolvimento.
Entre os problemas da Síndrome, Luna desenvolveu intolerância a certos alimentos, entre eles a lactose. Agora a pequena, que vive com uma sonda, precisa da fórmula à base de aminoácidos, que era fornecida pelo Cernutri para se alimentar.
“Ela internou e passou sete dias internada. Continua com a mesma coisa. Hoje, para alimentar a Luna, eu estou fazendo rifa solidária. Pedindo ajuda para eu conseguir comprar a fórmula, pois nós continuamos na mesma situação. Criança perdendo peso, criança ficando desnutrida, criança adoecendo. E até hoje nós não fomos respondidas, não fomos atendidas”.
“Continua a mesma situação triste”, disse a mãe de Luna ao g1.
‘A situação é muito difícil’
A jovem Edla Conceição, de 26 anos, é mãe da pequena Melissa Conceição, de 5 anos, que foi diagnosticada com paralisia cerebral após enfrentar uma série de paradas cardíacas logo nos primeiros meses de vida. A condição de saúde da criança, que exige cuidados constantes, tem sido agravada pela falta do leite com fórmula especial, tendo em vista que ela adquiriu intolerância a alimentos comuns.
Melissa, que desde 2019 é alimentada exclusivamente por meio de uma sonda devido à disfagia grave – condição que impede a ingestão de alimentos pela boca –, enfrenta obstáculos no ganho de peso. Segundo a mãe, após complicações de saúde e um longo período internada em um hospital, a filha nunca recebeu um tratamento nutricional contínuo e eficaz.
No caso dela, a fórmula indicada é a Fortini Plus, que chega a custar R$ 75 por lata. De acordo com Edla, para um mês seriam necessárias 25 latas, que custariam R$ 1.845 — valor considerado alto por ela, que está desempregada. A mãe conta que o Cernutri até chegou a fornecer algumas latas, mas foi de maneira esporádica e sem a continuidade necessária para a filha se manter bem e saudável.
Hoje, Melissa está pesando 10kg, considerado abaixo do peso ideal para alguém com a idade e condição dela, que seriam 16kg.
A pequena Melissa está abaixo do peso pela falta do leite com fórmula especial
Arquivo Pessoal/Fernanda Conceição
A família conseguiu o Tratamento Fora de Domicílio (TFD), que encaminhou Melissa para acompanhamento em Brasília. De acordo com os profissionais de Brasília, o progresso no tratamento de Melissa depende de uma sequência mínima de cinco meses com a mesma fórmula nutricional, no mesmo volume e da mesma marca.
“A situação é muito difícil, pois a Melissa já não tem boa saúde e, por não poder se alimentar pela boca, é mais difícil para ela ganhar peso e massa corporal. A maior luta tem sido para ela ganhar peso, já que é muito magrinha. Com tantas trocas de fórmulas, muitas vezes ela não aceitava o que lhe era dado, e isso resultava em diarreias constantes. Houve um período, em que fiquei desanimada. Passei um ano sem ir às consultas, cansada de procurar ajuda e não obter resultados”, disse a mãe ao g1.
A falta de um tratamento contínuo não apenas impede o ganho de peso de Melissa, como também provoca outros problemas no corpo da criança. “Mesmo com a idade que tem, o desenvolvimento dela está atrasado, e todas essas circunstâncias só agravam a situação”, afirma a mãe.
Samuel Torres, de 10 anos, precisa da fórmula que não recebe do Cernutri há 9 meses
Arquivo Pessoal/Janaina Torres
A luta de Edla é parecida com a de Janaina Torres, de 37 anos. Ela é mãe do Samuel, de 10 anos, portador da Síndrome Jouberth — um distúrbio genético raro que resulta em malformação congênita do tronco cerebral. Por conta da condição, ele precisa também da fórmula Fortini Plus. De acordo com a mãe, 9 latas seriam necessárias para um mês.
Ela também não recebe a fórmula pelo Cernutri desde novembro de 2023. Diante da dificuldade, diz que se sente abandonada pelo poder público enquanto faz o possível para garantir o bem-estar de Samuel, que não mastiga e só consome alimentos pastosos.
“Ele começou a usá-la [a fórmula] porque estava com peso abaixo do ideal. O leite funciona como uma espécie de complemento alimentar, quase como uma vitamina. Ele consome alimentos pastosos por mamadeira, o Fortini é essencial por ser rico em nutrientes que ajudam no ganho de peso”, explica a mãe de Samuel.
Porém, sem a fórmula recomendada, Samuel teve graves consequências para a saúde. “Quando pararam de dar o Fortini, a imunidade dele despencou. Ele chegou a adoecer, quase teve pneumonia. Graças ao tratamento oferecido pelo posto de saúde, consegui controlar o quadro antes que fosse necessário hospitalizar ele”.
Samuel Torres precisa do leite com fórmula especial para ganhar peso
Arquivo Pessoal/Janaina Torres
Janaina se dedica integralmente aos cuidados do filho e, por isso, não trabalha fora. Sem conseguir pegar o produto no Cernutri, aconteceu “uma sobrecarga financeira para a família” dela, tendo em vista que passou a ter outros gastos além dos custos com fraldas, alimentação e medicamentos.
Sem condições de arcar com todos os custos, Janaina teve que recorrer a outras alternativas para não deixar o filho desassistido.
“Fiz duas rifas nos últimos meses para conseguir dinheiro e comprar as fórmulas, fraldas e até uma cadeira adaptada para ele, que não consegui pelo poder público. Cheguei ao ponto de ter que pedir dinheiro emprestado para comprar os remédios. Agora, tenho que escolher: ou compro a fórmula ou ele acaba no hospital”, desabafou Janaina.
“O mais triste é saber que não é só o meu filho. Outras crianças especiais estão passando pela mesma situação, sem acesso à fórmula que precisam. Muitas mães, como eu, não têm condições de comprar”, frisou.
Por meio de nota, o Ministério Público de Roraima informou que possui um procedimento instaurado sobre o assunto e que acompanha o caso. O promotor de Justiça, Igor Naves, se reuniu nos últimos dias com algumas mães, inclusive alguns casos já foram ajuizados, individualmente, pelas famílias, e também mantém diálogo com a Prefeitura de Boa Vista para regularizar a situação.
No dia 30 de agosto o MP enviou ofício à prefeitura solicitando novas informações sobre o procedimento licitatório das fórmulas e iniciou tratativas para que seja firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a fim de restabelecer o repasse regular dos suplementos alimentares.
Nota na íntegra da Prefeitura sobre o assunto:
A Secretaria Municipal de Saúde informa que conseguiu avançar no processo licitatório para o fornecimento das fórmulas e está tomando todas as providências para adquirir o material o mais breve possível. Ressalta que o processo licitatório que constam as fórmulas é composto por 29 itens e todos vêm de outros estados. Destes, 19 itens já foram homologados e a secretaria já solicitou urgência na entrega dos mesmos, entrando em contato direto com as empresas fornecedoras, para o envio imediato do que têm disponível em seus estoques. Entendemos a preocupação das mães nesse atendimento. Porém, somos obrigados por lei a cumprir os prazos legais da licitação, que é extensa e rigorosa. Tudo que pode ser feito está sendo feito.
Reforça ainda, que o município criou o protocolo de liberação de fórmulas alimentares para os pacientes APLV que são atendidos pelo Cernutri, ainda que o fornecimento não seja de responsabilidade do município.
A secretaria esclarece que a fórmula Neoadvance 400g e Ketocal 4:1 não são padronizadas pelo Cernutri e, portanto, não são distribuídas pelo município.
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