Especialistas ouvidos pelo g1 explicam que aplicar medicamento para promover a disfunção erétil não impede ataques e há consequências graves à saúde; e que medidas contra pedofilia precisam considerar aspecto psiquiátrico. A cada oito minutos, uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual no Brasil. Com isso, os agentes públicos têm debatido como impedir esses crimes. Nesta semana, a Câmara aprovou a inclusão da “castração química” à pena de quem comete crime sexual, entre outras práticas envolvendo menores. No entanto, a medida é tida como controversa por especialistas por uma série de razões: a disfunção erétil não impede ataques e há consequências graves à saúde.
O projeto aprovado na Câmara, mas que ainda precisa passar pelo Senado, diz que quem cometer os crimes de estupro de vulnerável, prostituição infantil, aliciamento de menores ou portar, vender, gravar ou simular cenas de sexo com crianças e adolescentes será submetido à “castração química”.
➡️ Apesar do que o termo sugere, o procedimento não “castra” o criminoso. Na verdade, são usados medicamentos injetáveis ou orais que agem como inibidores de libido. Eles reduzem o desejo sexual e impedem a ejaculação, mas o efeito é temporário.
Após a aprovação, médicos e especialistas questionaram a decisão. O g1 conversou com o representante da Sociedade Brasileira de Urologia, Danilo Baltieri, especialista no atendimento a pessoas com pedofilia, com o médico urologista Eduardo Miranda, da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), e com Mauricio Stegemann Dieter, advogado e professor de direito da Universidade de São Paulo (USP).
Abaixo, nesta reportagem, você vai ler:
➡️ O que é castração química?
➡️ Ela pode mesmo combater crimes sexuais?
➡️ Castração química pode ser legal no Brasil?
Câmara dos deputados aprova castração química para pedófilos
O que é castração química?
➡️ O primeiro ponto que especialistas explicam é que não existe castração química, mas um tratamento hormonal no qual são usados inibidores de testosterona – principal hormônio ligado ao desejo sexual.
Os medicamentos atuam impedindo que a hipófise, responsável por controlar a produção de hormônios, envie sinais ao testículo para cessar a produção de testosterona. Eles são eficazes apenas em homens.
Esses medicamentos não foram feitos para tratar transtornos sexuais, mas sim doenças de próstata, câncer e têm como efeito colateral uma redução da libido.
➡️ É importante frisar que esse processo só é eficaz durante o uso dos medicamentos. Após a pausa, o efeito pode persistir, mas de forma menos intensa, por até seis meses.
No projeto aprovado pela Câmara, por exemplo, não fica claro se a medida será estendida após o cumprimento da pena.
Médicos alertam que castração química não é melhor opção para conter crimes sexuais
Jornal Nacional/ Reprodução
Ela é eficaz em controlar a violência sexual contra crianças?
O g1 conversou com o médico psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, e com o médico urologista Eduardo Miranda, da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), e eles explicam que não há evidência de que eliminar a libido possa conter a violência.
O psiquiatra Danilo Baltieri explica que a pedofilia é um transtorno psiquiátrico. Ele reforça que as pessoas que cometem crimes precisam ser punidas e defende o endurecimento das leis, mas afirma que, do ponto de vista científico, a terapia hormonal não impede a violência.
A pedofilia é um transtorno complexo e que não envolve só o impulso sexual. Usar medicamentos para impedir que o criminoso tenha uma ejaculação não vai evitar que ele ataque. Isso porque estupro é algo amplo e há outras formas, infelizmente, de fazer isso.
O médico pesquisa a pedofilia há mais de 20 anos, atendeu centenas de pessoas com o transtorno e já utilizou a terapia hormonal, mas explica que essa abordagem é relevante em poucos casos.
O urologista Eduardo Miranda explica que é necessário abordar a pedofilia sob o aspecto psiquiátrico, e não como uma questão hormonal para que as medidas sejam eficientes.
“Não há evidências que comprovem que o nível de testosterona resolva o problema, porque isso não vai impedir a violência. É uma questão psiquiátrica. Se formos discutir medidas de saúde, é preciso que sejam nesse campo”, reforça.
A medida é usada em outros países, como alguns estados nos Estados Unidos, França, Alemanha e Grã-Bretanha. No entanto, nenhum desses locais tem estudos de acompanhamento que comprovem que a reincidência dos crimes caiu apenas com o uso dessa medida – como propõe a lei no Brasil.
➡️Na França, por exemplo, a terapia hormonal não é obrigatória, mas uma opção para o preso que faz o acompanhamento. Ela só é permitida com consentimento e autorização médica, devido aos riscos graves à saúde.
Castração química pode ser legal no Brasil?
Mauricio Stegemann Dieter, professor da Faculdade de Direito da USP, explica que obrigar uma pessoa presa a manipular hormônios que podem afetar a sua saúde é uma violação da dignidade humana e é inconstitucional.
A ideia de manipular os seres humanos por meio de uma engenharia hormonal é uma prática autoritária, que não se justifica nem pelos piores motivos. É um absurdo passar um projeto desses, porque é inconstitucional e uma violação da dignidade humana.
O professor, que atua no Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia, reforça que, para ele, o projeto foi aprovado como uma medida eleitoreira, mas não oferece uma solução nem do ponto de vista científico nem do ponto de vista legal.
“Do ponto de vista jurídico, isso nem deveria ter sido proposto. Não é possível aprovar uma medida dessas no país. Trata-se de uma grave violação dos direitos fundamentais”, reforça Dieter.
➡️ O urologista Eduardo Miranda, da SBU, alerta também que, do ponto de vista da ética médica, a medida é ainda mais controversa. Isso porque ela é imposta a toda e qualquer pessoa que for enquadrada nesses crimes, independentemente das circunstâncias de saúde.
Além disso, ele aponta que a redução de testosterona a níveis ínfimos, como propõe a medida, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, osteoporose, problemas de mobilidade devido à perda muscular, entre outras.
“Isso não se encaixa na ética médica. Como podemos administrar algo a uma pessoa que pode prejudicá-la e aumentar o risco de morte? É muito difícil imaginar que um médico faça algo assim”.
O g1 procurou o Ministério dos Direitos Humanos, mas não obteve retorno até a publicação. A reportagem também procurou o Ministério da Saúde, já que o projeto cita que a medida seria adotada após um futuro regramento editado pela pasta, mas não obteve retorno até a publicação.