Em outubro de 2023, um caso emblemático reacendeu o debate. Mais de um ano após a morte de Fernando Moraes Roca Júnior, alguns avanços foram conquistados, mas ainda é preciso ampliar a consciência da sociedade em torno da questão. Lei proíbe fabricação de linhas cortantes à exceção de prática esportiva em áreas regulamentadas
Arquivo/Emely Azevedo
No final da tarde do dia 5 de outubro de 2023, Fernando Moraes Roca Júnior, de 25 anos, morreu após ter o pescoço cortado por uma linha de pipa na Rua São Mateus, no bairro Nova Esperança, em Rio Branco.
A morte do jovem causou comoção e reacendeu o debate sobre o uso de materiais cortantes na prática que pode ser um esporte para alguns, mas acaba sendo um risco de vida para outros.
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Fernando Moraes Junior tinha 25 anos, era empreendedor e filho do dono de uma distribuidora na capital acreana
Arquivo pessoal
Com pelo menos 152,9 mil motocicletas registradas, este tipo de veículo forma a maior parte da frota no estado do Acre, segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-AC).
São milhares de motociclistas que, todos os dias, estão expostos não só a condições climáticas adversas, mas a imprudência no trânsito. Existe uma outra ameaça, porém, mais difícil de ser vista, que vem do ar e em muitos casos causa incidentes fatais, como o de Fernandinho, como era chamado pela família.
As linhas com materiais cortantes são itens presentes na cultura acreana, já que costumam ser utilizadas para a prática da soltura de pipas, com uma disputa entre os praticantes para “derrubar” as pipas uns dos outros.
Caso aconteceu na Rua São Mateus, no bairro Nova Esperança, em Rio Branco
João Marcos Lebre/Arquivo pessoal
Apesar de ser comum, este uso é ilegal: a lei nº 2.359/2020 proíbe a comercialização de linhas com cerol, mistura de vidro e cola adicionada ao material para torná-lo mais cortante, ou a que é conhecida como linha chilena.
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Entretanto, essa legislação discorre apenas sobre a venda da mistura já adicionada ao material. Cabe à Polícia Militar e o (Procon) fiscalizar seu cumprimento e conscientizar sobre a importância da segurança na prática cuja frequência aumenta nos períodos de férias escolares.
O promotor de Justiça Rodrigo Curti destaca que o acompanhamento feito por órgãos e autoridades é essencial na solução do problema.
“Na verdade, agora a gente começa a entrar no período crítico desse tipo de prática, que são as férias escolares, nós temos uma intensificação dessa prática nos bairros periféricos da cidade, o que nos causa, digamos assim, maior preocupação, levando em consideração que nós temos pessoas que levam essa atividade como prática esportiva, a lei já estabelece a necessidade de locais específicos para soltura de pipas”, ressalta.
Promotor Rodrigo Curti diz que mudança nos costumes deve ocorrer de forma gradativa a partir do envolvimento do Poder Público
Asscom MPAC
O promotor destaca ainda a parceria do MP com outros órgãos para garantir o cumprimento da legislação.
“A fiscalização dos estabelecimentos que comercializam esse tipo de produto utilizado na confecção do cerol, ou a linha chilena propriamente dita, o Ministério Público, principalmente com Procon, realizou isso no meio desse ano, na época das férias. A ideia é a gente estabelecer essa parceria com o Procon, com os órgãos de fiscalização do consumidor, para que a gente possa intensificar a fiscalização”, enfatiza.
Curti, que é titular da Promotoria Especializada de Tutela do Direito Difuso à Segurança Pública do Ministério Público do Acre (MP-AC) é um dos nomes que têm participado das discussões em torno da questão.
Verão na Rede – Macapá Verão 2024 – Balneário da Fazendinha, em Macapá – Soltar Pipa – Rabiola – Cerol
Rafael Aleixo/g1
Em novembro de 2023, após a morte de Fernandinho, o promotor emitiu uma recomendação a diversas instituições que compõe o sistema de segurança pública do estado para que as leis que restringem o uso de linhas cortantes sejam postas em prática.
Durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), ainda à luz da polêmica pela morte do jovem, Curti afirmou que é preciso não criminalizar o esporte, mas sim responsabilizar quem insiste no uso das linhas cortantes mesmo com as proibições.
“Para o MP, não foi uma fatalidade, foi um ato criminoso que precisa ser apurado e responsabilizado o autor. A ideia não é criminalizar o ato da soltura de pipa, mas é responsabilizar aqueles que, de forma irresponsável e criminosa, utilizam de material cortante para soltura de pipas”, disse.
Fernando Moraes Roca Júnior, conhecido como Fernandinho, foi atingido por linha com cerol enquanto dirigia uma motocicleta no dia 5 de outubro de 2023, em Rio Branco
Arquivo pessoal/Cedida pela família
Pensando nisso, uma outra lei, de abrangência estadual, foi aprovada na Aleac poucos dias após a morte de Fernando. A proposta virou lei em 2024 após ser sancionada pelo governo em agosto, com a limitação da soltura de pipas a locais pré estabelecidos. O texto que virou lei foi batizado como “Lei Fernando Júnior”.
Esta lei reconhece a prática da soltura de pipas como um esporte, e os praticantes como “pipeiros”. O material é denominado linha esportiva de competição (LEC). Ainda no âmbito da Lei Fernando Júnior, foi criada a Acre Pipas, associação dos pipeiros do estado. O g1 tentou contato com a presidência da associação para saber quantas pessoas são associadas e não obteve retorno.
“O importante é a gente não esquecer que isso é uma questão cultural. Está muito ligada à nossa cultura a questão da soltura de pipas. A ideia não é acabar com a soltura de pipas, É a gente conscientizar que a soltura de pipas como material importante causa danos, expõe a vida de terceiros em perigo”, comentou Curti.
O promotor disse ainda que aos poucos tem sentido a mudança de comportamento da população.
“Assim, tivemos campanhas e isso ganhou um espaço muito importante na imprensa, foi objeto de discussão em vários foros, inclusive na própria Assembleia, no Poder Executivo, nos órgãos de segurança pública e a gente tem acompanhado então uma mudança, ainda que tímida, de comportamento nessa prática. É devagar, é contínuo, a gente não pode baixar a guarda, a gente tem que continuar“, alerta Curti.
Motociclista ficou com ferimentos no pescoço e queixo ao ser atingido por linha de cerol em Rio Branco em 2020
Polícia Militar
Pouco mais de um ano após a morte do jovem, a Polícia Civil ainda não chegou a um responsável pela linha que tirou Fernando do convívio com a família. A investigação ouviu possíveis testemunhas, coletou imagens, e até considerou um suspeito, mas não houve indiciamento e o caso continua aberto.
“O problema de acidentes como este é que a linha que causa a lesão pode ter sido utilizada por uma pessoa que está a centenas de metros do local em que a vítima é atingida”, destacou o delegado Gustavo Neves, titular da Delegacia da 4ª Regional de Rio Branco, localizada no bairro Tucumã.
Familiares e amigos homenageiam jovem morto após ser degolado por linha de cerol no Acre
Para a família de Fernandinho, após um ano sem o jovem, os dias têm sido de saudade e luta por conscientização.
“Por um tempo, a gente até cobrou bastante a polícia em questão das investigações, mas chegou uma hora que a gente percebeu que eles não iam fazer nada. O delegado até chegou a falar pra gente que não adiantava porque o máximo que ele ia pegar era um homicídio culposo, que não ia nem chegar a ser preso”, contou a irmão de Fernando, Misleiny Roca,
Ainda segundo ela, agora, a família do jovem tem outro foco. Lutar para que outras famílias não passem pelo que eles passaram.
Então, hoje a nossa luta é pra que não aconteça mais com outras pessoas, que haja fiscalização, denúncias, mas em relação à pessoa que foi responsável pelo acidente do meu irmão, a gente já sabe que isso, infelizmente, ou, felizmente, vai ser somente a justiça de Deus, porque aqui não vai ser”, salientou Misleiny.
Fernando, Antônio e Deisis, vítimas do uso indiscriminado de linhas cortantes
Arte/g1
Uma linha, muitas vítimas
Nem o MP-AC nem a Polícia Militar têm estimativas sobre ocorrências de condutores ou até mesmo pedestres feridos em vias públicas por linhas cortantes. Porém, elas não são inéditas.
Em julho de 2013, a então educadora de trânsito Cibele Melo passou por um susto semelhante duas vezes em uma semana. No primeiro caso, ela trafegava em sua motocicleta com seu filho quando foi surpreendida pela primeira vez por uma linha que prendeu em seu pescoço. Na mesma semana, ela estava saindo de casa em direção ao trabalho quando sentiu uma linha em seu pescoço
“Saí do trabalho e estava indo para casa quando senti a linha no meu pescoço e parei rapidamente. Estava bem devagar, a menos de 40 km/h”, contou à Rede Amazônica Acre na época.
A história se repetiu com a técnica de enfermagem Deisis Furtado, que em agosto de 2020, teve um encontro quase fatal com uma linha de cerol quando voltava de um plantão. O acidente causou um corte profundo no pescoço e deixou um trauma.
“A primeira vez que fui andar de moto de novo, fui na garupa com meu marido que veio me buscar no trabalho e quando foi chegando perto de casa, vi uma pipa e cheguei em casa morrendo de chorar toda, trêmula”, disse ela na época.
Já o autônomo Renato Miranda sofreu três cortes no rosto e quase perdeu a visão, também em agosto de 2020, depois de ser surpreendido por uma linha chilena quando fazia uma entrega Rua Cruzeiro do Sul, no bairro Esperança, na mesma região em que Fernandinho morreria três anos depois.
Promotor tem cobrado fiscalização de leis após morte de jovem degolado por linha de cerol
Tiago Teles/Asscom MP-AC
Mudança gradativa
O promotor volta a ressaltar que a discussão não se trata de criminalizar a prática, nem criar um estigma em relação aos praticantes. É necessário, porém, reconhecer o potencial de danos e até mesmo de letalidade, e criar uma consciência coletiva de que é preciso adotar cuidados.
“Sempre nessas épocas críticas, épocas das férias escolares, reforçar com campanhas preventivas e mudança de comportamento. Isso acontece assim, devagar e tem que ser contínuo, paulatino”, comentou.
O promotor finaliza falando sobre como a sociedade é capaz de entender e evoluir no costumes.
“Por exemplo, como até mesmo dirigir sob efeito de bebida alcoólica. Até uns 10 anos atrás, 15 anos atrás era permitido você dirigir bêbado, assim como era permitido você entrar com cigarro dentro de um avião. Mudança de comportamento aos poucos, a gente vai mostrando para a sociedade, para quem pratica esse tipo de atividade, de esporte, de lazer, que tem consequências para utilizar esse material importante. É um trabalho de formiguinha, um trabalho contínuo”, destaca.
Dentro disto, entra a criação de espaços exclusivos para o esporte, a colaboração dos pipeiros e o compromisso de órgãos públicos na garantia de que o que a lei prevê está sendo posto em prática.
“A Polícia Militar faz esse trabalho preventivo nas escolas, essa prevenção primária. E a gente tem o trabalho. Conversar, mostrar, informar é a melhor solução para evitar novos casos como o que aconteceu ano passado, infelizmente”, finaliza.
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