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Transtorno do jogo: as diferenças no cérebro de pessoas viciadas em bets


Em pacientes que desenvolvem esse tipo de distúrbio psiquiátrico, algumas áreas da cabeça relacionadas aos circuitos do prazer e ao controle dos impulsos apresentam alterações. Entenda quais as formas de diagnosticar e tratar essa condição.
Jogo caça-níquel Fortune Tiger, conhecido como jogo do tigrinho
Matheus Moreira
Uma vontade irresistível de arriscar. Uma certeza de que, dessa vez, a sorte vai sorrir. Uma falta de controle sobre gastos. Uma ausência de preocupação sobre as dívidas acumuladas.
Essas são algumas frases que podem descrever o que se passa com uma pessoa com dependência em apostas, como as bets — algo que é descrito nos manuais de medicina como transtorno do jogo.
A Associação Americana de Psiquiatria diz que esse quadro é marcado por “um padrão de apostas repetidas e contínuas, apesar do ato gerar vários problemas na vida do indivíduo”.
A entidade lembra que o problema vai além, e afeta também a família do paciente e toda a sociedade.
🧠 Mas o que acontece na cabeça de um indivíduo que é acometido pelo transtorno do jogo? Por que algumas pessoas que fazem apostas desenvolvem esse distúrbio — e outras não? E o que está disponível para ajudar a lidar com esse vício?
A BBC News Brasil ouviu especialistas e detalha a seguir as respostas para essas e outras perguntas relacionadas a essa doença.
Um mergulho no cérebro do apostador compulsivo
O psiquiatra Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), destaca que a dependência em fazer apostas apresenta uma raiz parecida a de outros vícios, como aqueles relacionados às substâncias (álcool, nicotina, cocaína…) e aos comportamentos (como sexo, alimentação, compras etc.).
“A gente tem uma área no cérebro chamada sistema límbico, em que uma série de estruturas interconectadas formam um circuito de recompensa. Elas são responsáveis por trazer uma sensação de gratificação”, detalha o médico, que também é professor da Escola de Medicina da PUC-RS.
🧫 🧬 Qualquer coisa que nos traga prazer — a atividade sexual, comer um alimento que gostamos muito, estar próximo de pessoas queridas, etc. — provoca a liberação do neurotransmissor dopamina nesse circuito.
“E esse mecanismo é muito importante para a nossa sobrevivência e evolução como indivíduo e espécie”, observa Spanemberg.
O problema é que existem substâncias e comportamentos que despejam uma quantidade muito maior da dopamina neste sistema do cérebro.
“Há certos fatores que entram no circuito de recompensa e pervertem toda essa experiência”, aponta o psiquiatra.
“Vamos supor que, numa situação prazerosa normal, a dopamina é liberada numa intensidade 10. Quando estamos diante de um elemento aditivo, essa intensidade sobe para 100”, compara ele.
De acordo com o psiquiatra, essa diferença “inaugura um parâmetro diferente de satisfação química no cérebro”, que “distorce a cognição” e “traz uma sensação de que é necessário repetir esse comportamento”.
“Aos poucos, a pessoa deixa de fazer coisas que seriam gratificantes e trariam uma escala de satisfação química normal para o cérebro, para algo que é aditivo e traz muito mais dopamina para esse circuito”, pontua Spanemberg.
Aréa do cérebro responsável por resolução de problemas tem atividade reduzida
O médico Vinícius Andrade, da Comissão de Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria, lembra que outras regiões do cérebro além do sistema límbico estão envolvidas no transtorno do jogo.
“Podemos citar áreas do córtex pré-frontal, que fica perto da testa, e é responsável pela tomada de decisões e resolução de problemas”, diz o especialista, que também é médico assistente do Ambulatório de Transtornos de Impulso da Universidade de São Paulo (USP).
“Em estudos que avaliam indivíduos com transtorno do jogo, foi observada também uma redução na conectividade de áreas como o córtex medial orbitofrontal, o striatum e o córtex cingulado anterior”, detalha ele.
Alguns trabalhos também citam alterações na amígdala, que está relacionada com a regulação do estresse.
Na prática, todas essas diferenças dificultam a tomada de decisões razoáveis ou conscientes — como, por exemplo, gastar ou não muito dinheiro em apostas que envolvem um alto grau de incerteza sobre eventuais ganhos futuros.
Temos, então, um cenário danoso por diversos caminhos: por um lado, há um enorme despejo de dopamina nos sistemas de recompensa, algo que é literalmente viciante; por outro, ocorre uma “bagunça” nos circuitos neuronais que deveriam tomar decisões racionais e ponderadas (como não gastar o dinheiro do aluguel ou das contas em apostas, por exemplo).
Mas será que esses efeitos são os mesmos diante de todas as modalidades de jogos — da aposta feita numa casa lotérica ao cassino e o joguinho instalado no celular?
Segundo os especialistas, a questão aqui está relacionada à disponibilidade.
Enquanto no caso da loteria é preciso se deslocar até um outro local, os aplicativos de aposta estão “grudados” na pessoa o tempo todo, já que o smartphone virou um apetrecho essencial.
“Antigamente, a pessoa tinha que ir até um local para poder jogar. Agora, ela é bombardeada o tempo todo com possibilidades de ganho e recompensa. Isso muda tanto o tempo de exposição quanto a intensidade com que isso acontece”, avalia Andrade.
“Além disso, sabemos que essas empresas de tecnologia coletam dados do usuário, o que aprimora as ferramentas para ampliar cada vez mais o estímulo e prender a atenção”, complementa ele.
Por que algumas pessoas desenvolvem o transtorno do jogo — e outras não?
Uma revisão de artigos publicada em 2019 na revista Nature Reviews e assinada por especialistas da Universidade Yale, nos EUA, e outras instituições americanas, canadenses e australianas, calcula que o transtorno do jogo afeta entre 0,4 e 0,6% da população.
O número varia consideravelmente de acordo com o local em que levantamentos do tipo são feitos. Em Hong Kong, essa porcentagem fica em 1,8%, enquanto na Austrália pode chegar a 2%.
Em linhas gerais, os especialistas e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) concordam que o distúrbio afeta ao redor de uma a cada 100 pessoas.
Mas e dentro do universo de indivíduos que fazem apostas com regularidade? Há uma tendência de o transtorno do jogo ser mais frequente neste grupo?
A resposta é sim. O médico Hermano Tavares, coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico e do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, lembra de um trabalho feito há uma década, que mostrou que 12 a 15% dos brasileiros apostam regularmente.
Na visão dele, esse número deve ter aumentado recentemente, com a liberação das bets e a maior disponibilidade desses serviços em aplicativos de celular.
“Das pessoas que jogam regularmente, em torno de 15% desenvolvem dificuldades com o jogo”, calcula Tavares.
“Ou seja, de sete pessoas que gostam de fazer uma fezinha de vez em quando, uma desenvolve esse tipo de problema”, detalha o especialista.
O psiquiatra destaca que essa é uma taxa média, pois o nível de adição pode variar de acordo com o tipo de jogo.
“Um jogo como o do tigrinho ou do aviãozinho é mais aliciante, então essa porcentagem tende a ser maior. Já uma aposta de loteria é algo mais protegido, porque o indivíduo faz a aposta e demora uma semana para ter acesso ao resultado”, compara ele.
Por trás do desenvolvimento do transtorno do jogo, há uma predisposição genética — embora não tenham sido identificados genes específicos por trás do problema — e também uma série de fatores ambientais.
Além da modalidade de jogo e o tipo de aposta, questões como idade e a presença de outras doenças psiquiátricas podem influenciar por aqui.
“Uma exposição mais precoce, antes dos 18 anos, quando o sujeito ainda não possui um freio inibitório bem desenvolvido no cérebro, é um importante fator de vulnerabilidade”, destaca Spanemberg.
“Pessoas que já têm um outro transtorno, como uma depressão, por exemplo, também apresentam maior risco de desenvolver dependência”, acrescenta ele.
O especialista pondera que todos esses elementos — genética, idade, doenças psiquiátricas, entre outros — não determinam se alguém vai necessariamente ter um problema relacionado ao jogo.
Mas eles aumentam a probabilidade de “desenvolver um comportamento pernicioso, danoso e patológico”, segundo o psiquiatra.
O que define o transtorno do jogo
A Associação Americana de Psiquiatria explica que uma pessoa pode ser diagnosticada com o transtorno do jogo quando tem pelo menos quatro sintomas da lista a seguir:
Pensamentos frequentes sobre apostas (como relembrar apostas no passado ou planejar apostas futuras);
Necessidade de apostar, com aumento na quantia gasta para alcançar o mesmo nível de excitação;
Esforços repetidos e frustrados para controlar, diminuir ou parar de apostar;
Inquietação ou irritabilidade ao tentar reduzir ou parar de jogar;
Ver o jogo como uma tentativa de escapar de problemas ou do estresse;
Após perder dinheiro ou algo de valor com apostas, sentir a necessidade de continuar no jogo para “se vingar” — algo também conhecido como “perseguir” as próprias perdas para superá-las;
Após perder dinheiro ou algo de valor com apostas, sentir a necessidade de continuar no jogo para “empatar” — ou seja, recuperar aquilo que perdeu;
Jogar quando sentir algum tipo de angústia;
Mentir para esconder o quanto está envolvido com jogos de azar;
Perder oportunidades importantes relacionadas com a vida pessoal e profissional por causa do jogo;
Contar com a ajuda de outras pessoas para lidar com problemas financeiros causados ​​pelo jogo.
Andrade chama a atenção para a importância do apoio da família e de amigos nesse processo de diagnóstico.
“Quando a gente fala de jogo, algo muito comum é o indivíduo mentir e mascarar as perdas ou a quantidade de vezes que aposta”, observa o médico.
“Ao mesmo tempo, ele tem uma grande vontade de jogar, num comportamento de fissura muito intenso. É como se você estivesse com fome e não pudesse comer”, compara ele.
O psiquiatra aponta que, se o paciente não conta com esse apoio de todos que o cercam, a busca por uma ajuda profissional acontece muito tardiamente.
“E isso gera um enorme prejuízo econômico e familiar”, lamenta Andrade.
Como tratar o transtorno do jogo
Feito o diagnóstico, é possível lançar mão de uma série de medidas para lidar com a dependência.
“A abordagem depende muito das características do paciente”, diz Spanemberg.
“A maioria deles possui algum outro transtorno psiquiátrico associado, como uma depressão, que também precisa de tratamento”, acrescenta ele.
“O jogo muitas vezes é uma estratégia, um subterfúgio para lidar com um sentimento negativo que está relacionado com outro distúrbio”, reforça Spanemberg.
Ao tratar a doença de base (como depressão ou ansiedade, por exemplo), a tendência é aliviar esses sentimentos negativos — e, por consequência, diminuir aos poucos a necessidade de fazer apostas.
Em linhas gerais, o transtorno do jogo pode ser trabalhado na terapia cognitivo-comportamental, um tipo de psicoterapia em que o paciente e o profissional de saúde avaliam e discutem comportamentos e pensamentos, para que eles possam ser modificados com o passar do tempo.
“Também há a entrevista motivacional, uma abordagem usada para entender o estágio de consciência que o indivíduo está em relação à dependência. Ele pode se encontrar numa fase de negação do problema ou contemplar o que está vivendo. Há também aqueles que já estão na etapa de ação, de trabalhar para sair daquela situação”, complementa Spanemberg.
Em alguns casos, os médicos podem também prescrever medicações.
“Sabemos que remédios da classe dos antagonistas opioides podem ajudar a segurar aquele comportamento típico da aposta”, cita Andrade.
O psiquiatra também lembra dos grupos de apoio. “No Brasil, temos os Jogadores Anônimos e o Gaming Addicts, que fazem um trabalho muito bom”, sugere ele.
Transtorno de jogo: a demanda por tratamento vai aumentar?
Diante da popularidade das bets — que, por exemplo, hoje patrocinam a maioria dos clubes de futebol da Série A do Campeonato Brasileiro —, existe um temor em termos de saúde pública sobre o aumento de casos de transtorno do jogo.
Entre os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa preocupação é clara.
“Precisamos discutir não apenas as repercussões sociais do jogo, mas também todas as questões de saúde mental”, concorda Spanemberg.
Tavares lembra que, em meados dos anos 1990, o Brasil viveu a febre dos bingos e das máquinas caça-níquel.
“Em 1996, os casos começaram a chegar lá no Instituto de Psiquiatria da USP. Eu era professor auxiliar e ouvi uma primeira pessoa dizer que gastava todo dinheiro nos bingos, se arrependia, ficava péssimo e depois tentava recuperar”, lembra ele.
“Resolvi transformar esse e outros relatos no meu objeto de estudo. Em 1998, após terminar meu doutorado, abri o Ambulatório de Jogo, onde fazia longas entrevistas com jogadores compulsivos e oferecia tratamento a eles.”
Com o passar do tempo, o serviço foi formalizado e precisou ser ampliado.
“A depender da época, chegamos a ter entre 5 a 10 profissionais contratados e outros 60 a 70 voluntários no ambulatório. No auge, contamos com cerca de 80 colaboradores”, estima Tavares.
Essa demanda foi reduzida com o fechamento dos bingos, em meados de 2004. Mesmo assim, ela nunca chegou a cessar.
Mais recentemente, de 2018 em diante, com a inundação das bets e outros jogos onlines no Brasil, a procura pelos serviços do ambulatório voltou a subir.
“Com a nossa estrutura atual, conseguimos atender 80 casos novos por ano, além de acompanhar outros 160 pacientes que fazem um seguimento por cerca de dois anos”, informa o psiquiatra.
“Mas diante de um fenômeno como esse que vivemos agora, ficamos com o triplo de pacientes na fila de espera.”
“É claro que esses números não retratam a realidade do Brasil, são apenas gotinhas num oceano muito maior”, avalia o especialista.
Para Tavares, o aumento do acesso às apostas está relacionado a uma demanda na frequência do transtorno do jogo entre a população — e será necessário criar um aparato no Sistema Único de Saúde (SUS) para absorver essa demanda de pacientes.
“O jogo sempre existiu e sempre vai existir. O que varia é a forma como se regulamenta esse setor”, avalia o médico.
“Podemos permitir uma maior ou menor penetração deles na sociedade. Se proibimos tudo, isso diminui a demanda por tratamento, embora sempre exista o mercado ilegal.”
“Agora, caso o jogo seja liberado por uma questão de equilíbrio das contas fiscais e economia, será necessário fazer um investimento equivalente na saúde pública. Isso precisa virar uma política de Estado”, opina ele.
“Se esse investimento não acontecer, o tiro sai pela culatra. A arrecadação com eventuais impostos não será suficiente para tapar o buraco do adoecimento mental e das mazelas financeiras relacionadas ao jogo”, conclui o psiquiatra.
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