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Como a pandemia mudou a cara de Dongguan, reduto brasileiro na China


Por décadas, cidade teve uma das maiores comunidades de brasileiros, até que a explosão da Covid-19 e mudanças econômicas fizeram com vários trabalhadores fossem embora. Mesmo assim, costumes brasileiros ganharam popularidade, como comer arroz e feijão e ir a churrascarias. O gaúcho Valdecir Schneider entre a mulher Jenny Lee e o sócio carioca Fernando Rodrigues Andrade, na churrascaria brasileira Latin, um dos redutos dos brasileiros e de muitos chineses em Dangguan.
Silvano Mendes / RFI
Quem entra na escola Wisdom, localizada em uma rua arborizada de Dongguan, não sabe se está na China ou no Brasil. Nas salas de aula, que acolhem crianças e adolescentes de todas as idades, os idiomas se misturam, entre chinês e português, com algumas pitadas de inglês, e principalmente com professoras que preservam as tradições das escolas do Brasil, celebrando festa junina e até o Dia do Gaúcho.  
A escola Wisdom é apenas um exemplo da presença brasileira nesta cidade da província chinesa de Guangdong (Cantão). Dongguan começou a atrair imigrantes do Brasil na década de 1990, quando muitas fábricas de calçados se instalaram nessa dinâmica zona industrial.
As empresas, que produziam sapatos na região gaúcha do Vale dos Sinos, escolheram a Ásia em busca de mão de obra mais barata. Mas logo se deram conta que a experiência dos técnicos brasileiros faria a diferença, e muitos dos empregados das fábricas do sul do Brasil foram contratados para ensinar aos chineses como fazer sapatos de qualidade.
Foi assim que, aos poucos, uma verdadeira comunidade verde-amarela surgiu em Dongguan e chegou a alcançar um núcleo de 5 mil brasileiros, segundo estatísticas não oficiais. Essa população tinha quase sempre o mesmo perfil: homens que atraídos pelos bons salários na época migravam com suas famílias para a cidade.
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Até hoje, “a maioria trabalha na área de calçados”, explica Jocenara dos Santos, que mora na China há 14 anos e é professora na escola brasileira.
Ela lembra que várias dessas famílias estão instaladas em Dongguan há mais de uma década. Muitos já tiveram filhos no território chinês. Mesmo assim, preferem manter o elo cultural com o Brasil. “Os pais escolhem matricular as crianças aqui porque a gente foca bastante no português”, diz a professora.
Arroz e feijão no almoço
Os diplomas da escola são reconhecidos no Brasil, e os alunos seguem o currículo brasileiro. A única diferença é que as aulas são em português, mas também em chinês e inglês. Uma diversidade linguística que atrai até alunos 100% chineses.
“Eles vêm pela curiosidade, por ter amigos ou colegas de trabalho brasileiros. Querem saber não só a língua, mas também os costumes, pois nós somos diferentes”, conta Jocenara, que se orgulha de servir arroz e feijão diariamente no almoço que é ofertado na escola.
Escola brasileira em Dongguan recebe filhos dos expatriados, mas também chineses interessados pela cultura do Brasil.
Silvano Mendes / RFI
No entanto, se o estabelecimento já chegou a ter mais de 100 alunos, agora apenas 27 crianças e adolescentes estão matriculados. Pois como no resto da cidade, a escola vem assistindo nos últimos anos a uma diminuição considerável da comunidade brasileira.
Muitos desses expatriados perderam seus empregos e deixaram a China. Seja por causa do fechamento das fábricas, que se mudaram para outros países asiáticos ou até africanos, em busca de mão de obra ainda mais barata, ou pelo simples fato que os chineses aprenderam a expertise brasileira no setor calçadista e aos poucos foram substituindo esses imigrantes.
Esta situação piorou durante a pandemia de Covid-19. Além do fechamento das fábricas, quando o surto teve início no começo de 2020, muitos brasileiros de Dongguan estavam em férias no Brasil com suas famílias e, diante das restrições do governo chinês para entrada no território, apenas alguns trabalhadores conseguiram voltar.
Durante meses, várias famílias permaneceram separadas por causa do coronavírus. Os homens continuaram a trabalhar na China, enquanto as mulheres e crianças ficaram bloqueadas no Brasil. Essa distância fez muita gente desistir do “sonho chinês” e voltar de vez para casa. 
“O país não tinha inflação”
Fernando Andrade viu de perto esse movimento. O carioca mora na região há 17 anos, onde chegou como músico e hoje presta assessoria em importação e exportação. Ele perdeu as contas do número de contêineres com mudanças que ajudou a despachar de volta para o Brasil.
“Hoje, em Dongguan, eu acredito que [a população brasileira] esteja abaixo de 200 [pessoas]. Já foram milhares. E isso foi consequência dos três anos de pandemia, que afetaram muito o setor calçadista, principal atividade dos brasileiros por aqui”, afirma.
“Dongguan já foi a cidade com o maior número de brasileiros na China”, frisa o carioca.
“Quando eu cheguei aqui, o país não tinha inflação”, comenta Elcio Diamantino, que chama a atenção para uma mudança de paradigma econômico que contribuiu para o êxodo dos brasileiros.
O carioca, que vive há 20 anos no território chinês, também é músico e lembra com saudosismo os tempos em que os preços não aumentavam e o salário oferecido aos imigrantes qualificados era suficiente para uma vida confortável. “Não é dizer que a China está ruim. Porém, o custo de vida mudou”, aponta.
Picanha suculenta assustava chineses
Mesmo assim, as atividades ligadas ao Brasil continuam na cidade. Basta visitar a churrascaria Latin, restaurante que mata a vontade dos brasileiros saudosos e encanta os chineses com o sistema de rodízio à brasileira.
Fernando Andrade é um dos sócios, junto com o gaúcho Valdecir Schneider. Eles atendem mensalmente cerca de 12 mil clientes. Esse número pode parecer uma gota d’água em um país do tamanho da China, mas é uma proeza para um pedacinho do Brasil tão distante dos Pampas. 
Schneider, que dirige o restaurante com sua mulher, a chinesa Jenny Lee, conta que demorou para convencer a clientela local sobre os hábitos carnívoros vindos do sul do Brasil. Ele se lembra com humor do fascínio e de uma certa apreensão dos asiáticos diante do rodízio de espetos – servidos inicialmente por garçons brasileiros, agora substituídos por chineses.
“Há 20 anos, quando eu chegava com aquela picanha suculenta e metia a faca, o cliente praticamente me empurrava [temendo o sangue que pingava no prato]”, recorda.
Hoje, a história mudou. Os clientes não apenas perderam o medo da carne malpassada e dos espetos do churrasco brasileiro, como 90% dos que comem no restaurante de Schneider e Andrade são chineses.

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